A primeira cena de Caramelo já entrega tudo: um vira-lata faminto, um frango à mostra e Waldick Soriano cantando “Eu Não Sou Cachorro Não”. É quase uma síntese do país; a fome, o improviso e a trilha sonora nostálgica embalando o caos. Dirigido e roteirizado por Diego Freitas, o novo filme da Netflix tenta abrasileirar o subgênero dos “filmes de jornada canina” ao apostar num símbolo nacional. E embora o vira-lata do título seja o foco principal, o filme acaba dividindo o protagonismo entre o cão e seu dono, um chef de cozinha que também tem muito a aprender sobre sobrevivência.
Pedro (Rafael Vitti), um chef prestes a realizar o sonho de abrir seu restaurante, tem a vida virada do avesso ao descobrir um câncer. O ponto de virada vem em forma de quatro patas e olhar pidão: Caramelo, um vira-lata que muda o rumo da história, e a forma como Pedro enxerga a própria vida. É o tipo de sinopse que poderia facilmente escorregar para o sentimentalismo, mas Diego Freitas equilibra emoção e crítica social com alguma astúcia.
O filme não é sobre um cachorro “fofo”, é sobre o que ele representa. O caramelo é o retrato do Brasil real: abandonado, resistente e, ainda assim, disposto a oferecer afeto. De acordo com dados recentes da OMS, o país tem cerca de 30 milhões de animais abandonados — metade deles são cães. Estima-se que cerca de 10 milhões vivem nas ruas, e os abrigos públicos e privados estão constantemente lotados, com capacidade muito abaixo da demanda. Ou seja, a cena do cachorro roubando frango não é ficção: é um recorte do cotidiano de qualquer esquina.
Rafael Vitti encontra aqui um papel que foge da estética “galã de novela” e funciona bem. Ele entrega um personagem contido, atravessado pela solidão e pelo medo do tempo. O contraponto vem de Amendoim, o cãozinho real que interpreta Caramelo, e rouba o filme com carisma puro. Freitas acerta ao usar o cachorro como metáfora do país: alegre, sobrevivente e eternamente improvisado.
Visualmente, o filme tem um pé no realismo e outro no pop, talvez um reflexo da própria Netflix tentando domesticar a precariedade. A trilha sonora ajuda, as cenas em São Paulo têm textura e o elenco de apoio (incluindo Paola Carosella, em um papel pequeno mas simpático) sustenta o tom de humanidade.
Mas o maior mérito de Caramelo está fora da tela: os 60 cães usados nas filmagens foram resgatados e adotados pela própria equipe. Num país onde a cada esquina há um olhar canino pedindo cuidado, esse gesto transforma a ficção em ação e conscientização.
No fim, Caramelo é sobre o que sobra quando a pressa e a indiferença passam: o olhar de um animal abandonado que ainda acredita na gente. E talvez, no meio de tanto cinismo, seja disso que o Brasil mais precise — um pouco de lealdade, mesmo depois de tantos perrengues.
Você encontra Caramelo na Netflix.
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