Categorias
Sem categoria

Alpha — Corpo como Contágio e Salvação

Alguns filmes não terminam quando a tela escurece, eles permanecem dentro da gente, como uma febre. Alpha, novo longa de Julia Ducournau, é exatamente isso: um filme que arde, coça e não cicatriza.

Escrito e dirigido pela cineasta que redefiniu o horror corporal com Raw e Titane, Alpha é, antes de tudo, um mergulho na carne; mas uma carne que apodrece e se desfaz em pó, que não grita, mas silencia. Um drama familiar que começa íntimo e termina apocalíptico, questionando o que acontece quando o amor e a infecção se tornam indistintos.

Assisti Alpha no Festival do Rio  e confesso: minhas expectativas eram enormes. Julia Ducournau é minha diretora preferida. Há algum tempo, quando me perguntaram quem eu mais admirava no cinema, não soube responder. Só soube depois de ver Raw e Titane. Ali entendi que o cinema dela me atravessa de um jeito raro: é físico, feminino e selvagem. Ela filma o corpo como quem filma a alma.

E Alpha reafirma isso. Já na cena inicial, uma menina desenha nas feridas do homem que cuida dela, ligando cicatrizes como quem tenta reconstruir uma constelação perdida. É belo e incômodo, quase impossível desviar o olhar. A câmera de Ducournau tem essa delicadeza brutal: a de nos fazer olhar mesmo quando queremos desviar.

“Não é um bom momento para sangrar.”

Quando o filme corta para o tio de Alpha se drogando, vi ali um eco de Réquiem para um Sonho. A agulha, a pele, o desespero. Mas o que mais me marcou foi a cena seguinte: Alpha, já adolescente, bêbada em uma festa, deixando que alguém tatue um “A” torto em seu braço. Naquele momento, me vi lembrando do que assistia aos treze, como Eu, Christiane F. e Skins. Aquela mistura de descoberta e autodestruição, o desejo de pertencer e o medo de se perder. Julia Ducournau entende esse limiar como poucos, o instante em que o corpo quer ser livre e acaba virando prisão.

O filme é uma grande odisseia pandêmica. A infecção aqui é tanto literal quanto simbólica: corpos que se tornam mármore antes de se dissolver em pó branco. O medo se espalha, e a sociedade se desintegra — um reflexo de tudo o que vivemos, do isolamento, da paranoia, da falta de toque. Há um momento em que a mãe de Alpha, interpretada de forma arrebatadora por Golshifteh Farahani, limpa o vômito da filha e descobre o corte fresco da tatuagem, e eu senti o nó na garganta de quem ama e teme ao mesmo tempo.

Tahar Rahim está esplêndido como o tio, um corpo frágil, doente e cheio de culpa. A relação entre os três: mãe, filha e irmão,  é o coração pulsante do filme. É onde Ducournau transforma o horror em ternura, a doença em vínculo.

E como sempre, a trilha sonora é um personagem à parte. Quando Portishead começa a tocar logo no início, senti aquele arrepio que só o cinema dela provoca,  como se cada batida de som fosse uma gota de sangue caindo em câmera lenta.

“Deve ser um inferno ser criança hoje em dia.”

Sim, o último ato se estende demais, com saltos temporais um pouco confusos. Mas mesmo ali, há uma coerência emocional: o caos é parte da experiência. Alpha é um filme sobre o colapso,  do corpo, da família, do mundo.

Saí da sessão com a sensação de estar coberta pelo mesmo pó branco que domina a tela. Como espectadora, senti o incômodo físico; como roteirista, admirei a coragem. E como mulher, me reconheci naquele gesto final,  o de tentar religar a carne rasgada de alguém.

No fim, Alpha não é sobre vírus. É sobre o contágio que é amar alguém até o limite da dor. E talvez seja por isso que eu continue pensando nele — e em Julia Ducournau — muito depois que a luz do cinema se apagou.

Você encontra Alpha no Festival do Rio.

Gostou do conteúdo? Então deixa uma comentário para eu saber disso!

Até o próximo texto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *