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Anora

Desde que Sean Baker surgiu no cenário cinematográfico com obras marcantes como Tangerina (2015) e Projeto Florida (2017), seu nome tem sido sinônimo de autenticidade e experimentação no cinema independente. Com Anora, Baker não só consolida seu status como um dos criadores mais ousados de sua geração, mas também abre caminho para a temporada de prêmios, posicionando seu novo filme como um forte concorrente ao Oscar de 2025 – especialmente após ser coroado com a Palma de Ouro em Cannes 2024.

Baker, que assina tanto o roteiro quanto a direção, prova novamente ser um exímio observador da humanidade, com um talento único para explorar e humanizar personagens marginalizados. Sob o pretexto de uma comédia romântica, ele constrói em Anora um filme que transborda crítica social, nuances emocionais e uma sensibilidade estética que é ao mesmo tempo crua e deslumbrante. O resultado é uma história que desconstrói o conto de fadas empacotado em Hollywood e entrega algo infinitamente mais real, mais doloroso e mais memorável.

O roteiro é um dos pilares mais fortes do filme. Sean Baker consegue equilibrar com diálogos naturalistas, momentos de leveza cômica e reflexões sobre poder, classe social e trabalho sexual. A protagonista Ani ou Anora, como é chamada ao longo do filme ganha profundidade e camadas como raramente se vê em personagens femininas. Interpretada por Mikey Madison em sua performance mais impactante até agora, Ani é uma protagonista complexa em todos os sentidos. Vivendo como trabalhadora do sexo no Brooklyn, Ani encara os desafios diários de sua rotina com uma mistura de pragmatismo e cuidado: fazendo piadas, comendo no meio do expediente e conversando com amigas, enquanto navega por um ambiente cercado de preconceitos.

A genialidade do roteiro está em construir sua trajetória sem didatismos ou paternalismos. Ani, com sua personalidade forte e vulnerável, não é apresentada como vítima absoluta nem como heroína, mas como uma mulher cuja humanidade é mostrada em cada cena.  Madison entrega uma interpretação recheada de nuances, mesclando força e ingenuidade. É impossível não se conectar com sua Ani, uma personagem cujas escolhas imprudentes têm consequências trágicas, mas que nunca perde sua dignidade. A relação da personagem com Ivan (Mark Eydelshteyn), o filho de um oligarca russo, revela a disparidade crua entre aqueles que sofrem com a desigualdade social e aqueles que permanecem acima de quaisquer consequências.

Sean Baker não se contenta em contar uma história; ele transforma Anora em uma experiência cinematográfica quase tátil. A direção é precisa, criativa e permeada por uma energia que captura tanto o caos quanto a esperança de sua narrativa. Baker sabe perfeitamente quando desacelerar para explorar os momentos mais íntimos – entre Ani e suas amigas ou mesmo suas interações mais vulneráveis com Ivan – e quando escalar a trama para o puro absurdo.

No segundo ato, quando a família de Ivan entra na história e uma comitiva de capangas chega ao Brooklyn para anular o casamento do casal, Baker eleva a comédia ao limite do tragicômico. O caos instaurado nas situações – tragicômicas e absurdas – que se seguem é um triunfo criativo, ao mesmo tempo em que serve como veículo para uma crítica contundente às dinâmicas de poder. Baker expõe o ridículo dessas situações, mas nunca de forma gratuita, usando o exagero como forma de intensificar o impacto emocional e crítico do longa.

A fotografia  é, simplesmente, espetacular. O filme transita entre momentos de intensa intimidade e sequências grandiosas embaladas pela vibrante estética neon do Brooklyn. A fotografia captura a pulsação da cidade: é ao mesmo tempo elétrica e sufocante, delicada e brutal.  Sean Baker sabe como usar a paleta de cores saturada para amplificar a viagem emocional de sua protagonista – seja nos tons quentes que iluminam uma noitada de sonhos com Ivan ou os tons frios e desolados que refletem as duras investidas do mundo ao redor de Ani.

A trilha sonora também brilha como um elemento-chave. Sua força vai além de complementar a narrativa; ela é uma extensão dos eventos do filme, capaz de carregar peso dramático em cenas silenciosas e intensificar o ritmo das sequências mais caóticas. A escolha precisa de cada faixa, como TATU na trilha sonora é um golpe de mestre: ao mesmo tempo nostálgica e provocativa, sua presença musical ressoa de forma poderosa, contribuindo para um ambiente que mistura o clássico e o moderno, o leve e o pesado.

Embora Anora seja vendido como uma comédia romântica – e, em determinados momentos, flerte com esse tom –, é na desconstrução do gênero que a obra realmente brilha. Baker utiliza as convenções do conto de fadas moderno para expor a disparidade de classes e as injustiças intrínsecas entre aqueles que têm poder e aqueles que vivem à margem.

Ivan, o filho de uma família rica que age com desdém sobre suas ações, é o completo oposto de Ani, que precisa lidar com todas as consequências de suas escolhas. Enquanto ele retorna para a Rússia sem nenhuma marca de sua experiência, ela é deixada para recolher os pedaços da vida que tentou construir. O filme não dá respostas fáceis nem oferece conforto. O final é desconfortável, porém autêntico, refletindo de forma honesta as desigualdades de um mundo onde poder e privilégio ditam as regras.

Anora não é apenas um grande filme; é uma obra que reafirma o talento de Sean Baker. Em um ano competitivo, é difícil imaginar que o filme não continue ganhando atenção na temporada de prêmios. É um filme que transcende os rótulos, ao mesmo tempo acessível e desafiador, comédia e drama, deslumbrante e desconfortável.

Você encontra Anora a partir do dia 23 de Janeiro nos Cinemas.

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