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Krishnamurti- A Revolução do Silêncio: Quando o Pensamento se cala e a Consciência escuta

Krishnamurti: A Revolução do Silêncio é um daqueles filmes que não se assiste; se vivencia. Dirigido por Françoise Ferraton, o documentário sobre o filósofo indiano Jiddu Krishnamurti convida o espectador a desacelerar, observar e, acima de tudo, silenciar. Saí do cinema em suspenso. O filme ecoa mais do que explica, e talvez esse seja o maior mérito: ele não busca converter, mas despertar.

A diretora utiliza imagens de arquivo, entrevistas e leituras de cadernos que vão de 1961 a 1984, ano do último diário do pensador. A estrutura é simples, quase transparente, porque o centro de tudo é a voz de Krishnamurti; uma voz calma, lúcida, que parece atravessar o tempo e sussurrar para o presente. Ele fala sobre o poder da observação, sobre como a consciência contém em si o sofrimento humano. Não apenas o sofrimento pessoal, mas o de toda a humanidade.

O filme começa com a fluidez de um rio. E é justamente nesse ritmo que Ferraton conduz a narrativa, um fluxo de imagens, pessoas, natureza. Aos poucos, a água dá lugar à terra, e a contemplação se torna espelho. Krishnamurti dizia que “ser livre é observar sem julgamento”, e o documentário parece filmar exatamente isso: o olhar que se liberta da pressa, da opinião, da necessidade de ter razão.

Mas é impossível sair ileso. A verdade, aqui, chega a ser sufocante. As imagens de imigrantes exaustos, famílias atravessando fronteiras em busca de abrigo, pessoas sem terra, sem casa, sem país, todas fugindo da guerra e da fome, dão corpo ao sofrimento coletivo de que Krishnamurti fala. É o retrato visível da consciência humana adoecida. O silêncio proposto por ele não é fuga, é enfrentamento. É o convite a enxergar o caos humano sem reagir com mais ruído, sem tentar curar o mundo antes de olhar para o que há dentro de nós.

O documentário percorre sua trajetória, da juventude na escola teosófica à vida na Inglaterra e depois na Califórnia, onde viveu seus últimos anos. Mas mais do que biografia, A Revolução do Silêncio é um estado de espírito. O filme não tenta explicar Krishnamurti; tenta sentir com ele.

“Você ouve a palavra ou o conteúdo da palavras?”

Entre as reflexões, uma frase permanece: “Compaixão é liberdade. E compaixão significa o fim do sofrimento.” É simples e devastador. Ser livre, afinal, é cessar a busca. É aceitar que talvez a verdadeira revolução seja interior, invisível e silenciosa.
Krishnamurti: A Revolução do Silêncio é um lembrete raro de que pensar nem sempre é entender;  às vezes é só respirar. E nesse respiro, algo muda.

Você encontra Krishnamurti no Festival do Rio .
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Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria: Maternidade, Colapso e o Teto que desaba sobre todas nós

Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria é um daqueles filmes que todo mundo precisa ver. Saí impactada da sessão no Festival do Rio e demorei dias para digerir tudo o que Mary Bronstein constrói aqui. É um filme que te atravessa; não por gritar, mas por expor com precisão e ironia o que significa ser mulher (e mãe) em colapso.

Mary Bronstein não filma apenas uma mulher à beira de um colapso, ela filma o colapso em si. Em Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria, Rose Byrne é Linda, uma mãe, psicóloga e sobrevivente de um cotidiano que parece conspirar contra ela. O teto literalmente desaba, e a metáfora não poderia ser mais óbvia  e mais dolorosamente real. Depois que a água invade o apartamento, Linda é obrigada a se mudar para um motel com a filha doente. O marido está sempre ausente, o terapeuta parece mais interessado em provocá-la do que em ajudá-la, e o mundo inteiro parece lhe exigir equilíbrio quando tudo o que ela precisa é de cinco minutos de silêncio e solitude. A vida desmorona em câmera lenta  e, de alguma forma, ainda assim ela precisa dar conta de tudo.

“Deve ser legal fazer as coisas para se divertir.”

O filme, distribuído pela A24, é uma comédia sombria com cara de pesadelo doméstico. Mary Bronstein filma o caos com precisão: as câmeras próximas, os closes sufocantes, os enquadramentos que cortam o ar. A ausência visual da filha, que só aparece de corpo fragmentado, em pés, mãos e orelhas, é um gesto brilhante. A criança existe, mas o foco está na mãe, e isso muda tudo. Se víssemos a menina por completo, talvez esquecêssemos de olhar para Linda, e é justamente sobre isso que o filme fala: sobre a mulher que desaparece por trás da função de ser mãe.

“Isso é típico dela.”

Rose Byrne está monumental. Vencedora do Urso de Prata de Melhor Atriz em Berlim, ela equilibra exaustão, desespero e ironia com uma entrega que parece saída de um transe. Em cada expressão dela há culpa e resistência, vergonha e amor. Byrne não interpreta a “boa mãe”,  ela vive a mulher real, que quer amar, mas também quer fugir. Que ama o silêncio tanto quanto teme a solidão. O roteiro de Bronstein, ao mesmo tempo cruel e engraçado, tem um humor que nasce do absurdo da rotina. “Se eu tivesse pernas, eu te chutaria” não é apenas um título provocativo — é um grito abafado de todas as mulheres que tentam sustentar uma casa, um trabalho, uma criança e a própria sanidade.

“Só quero que alguém me diga o que fazer.”

A diretora brinca com os gêneros: há drama, há comédia, há um leve tom de thriller psicológico. E em meio a tudo isso, surge o retrato cru da maternidade contemporânea; uma maternidade atravessada por culpa, vergonha e exaustão. A mãe perfeita é uma ficção tão perigosa quanto o teto que ameaça cair. O filme faz uma pergunta silenciosa: será que todas nasceram para ser mãe? E uma afirmação ainda mais incômoda: ser mulher já é, por si só, uma forma de resistência. No fim, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria deixa uma sensação que fica no corpo. É impossível sair igual. Porque depois de acompanhar Linda, você nunca mais olha para a sua mãe — nem para si mesma — da mesma maneira.

Você encontra Se Eu Tivesse Pernas, Eu te Chutaria no Festival do Rio .
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Elisa- O Véu da Culpa: O Crime, A Memória e O Peso do Perdão

Em Elisa – O Véu da Culpa, Leonardo Di Costanzo mergulha nas zonas mais turvas da mente humana, aquele lugar onde culpa e negação se confundem com sobrevivência. Inspirado em uma história real, o filme é uma coprodução entre Itália e Suíça e acompanha Elisa, uma mulher de 35 anos, presa há mais de uma década por um crime brutal: matar e queimar o corpo da própria irmã. Ela diz não se lembrar de nada. E talvez essa seja a única verdade possível.

O diretor constrói um drama psicológico que caminha lentamente, às vezes até demais, mas com propósito. Nada é gratuito. O silêncio aqui fala tanto quanto a fala, e o olhar de Elisa carrega mais perguntas do que respostas. Ao aceitar participar da pesquisa do renomado criminologista Alaoui, especialista em crimes familiares, ela se vê obrigada a revisitar o que mais teme: a própria memória.

Aos poucos, fragmentos do passado emergem. Uma infância marcada por rejeição; uma mãe que dizia não tê-la querido, um ambiente aparentemente estruturado, mas emocionalmente devastado. Elisa cresceu sem afeto, reprimindo o que sentia até que a raiva se confundiu com medo. E quando o medo transbordou, o crime aconteceu. Ela apenas não consegue encarar o reflexo do que foi capaz de fazer.

O filme propõe uma reflexão desconfortável: o que é, afinal, a culpa? Um fardo moral, um instinto de autoproteção, ou apenas o nome que damos àquilo que não sabemos como processar? Costanzo articula tudo isso através das sessões com Alaoui, que enxerga no criminoso não o monstro, mas o humano imperfeito, falho e ainda assim capaz de redenção.

Há um contraste forte entre os dois exemplos de perdão apresentados: o pai que visita a filha duas vezes por semana no centro penitenciário, e a mãe de outro caso, que perdeu o filho assassinado e permanece prisioneira da própria dor. Um perdoa o imperdoável; o outro não consegue sobreviver ao ódio. Entre eles, o espectador é colocado diante do espelho, e o filme pergunta: você perdoaria um criminoso?

A fotografia fria, quase clínica, reforça essa distância entre o que é lembrado e o que é reprimido. Elisa – O Véu da Culpa é um filme sobre memória e negação, mas também sobre humanidade, sobre o que resta quando o castigo já foi cumprido, mas o perdão ainda não chegou.

Costanzo entende que olhar para o passado é o verdadeiro cárcere. E talvez o perdão, dos outros e de si mesma, seja o único caminho possível para sair de lá.

Você encontra Elisa- O Veu da Culpa no Festival do Rio .

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Ruas da Glória: O Amor à beira do abismo

Desde Tá e Fala Comigo, Felipe Sholl vem lapidando um olhar próprio sobre o desejo e o afeto. Em Ruas da Glória, essa crescente se confirma, Sholl parece mais solto, mais corajoso, e confortável para filmar o que muita gente ainda evita: o corpo, o tabu, o vazio. É um filme que respira o caos do Rio à noite, entre o suor, a luz e a falta dela.

Gabriel (Caio Macedo) chega à cidade depois da morte da avó, tentando encontrar vida onde antes só havia rotina. Professor de literatura, ele se torna observador e participante do que se mostra curioso: os homens que vendem prazer e sobrevivem do desejo alheio. Até conhecer Adriano (Alejandro Claveaux), um garoto de programa uruguaio que se torna seu ponto de fuga, e de queda. O que nasce como curiosidade vira dependência; o amor, aqui, é experiência de risco.

Felipe Sholl filma a cidade como extensão emocional dos personagens. As ruas da Glória e da Cinelândia não são apenas cenários, são estados de espírito. Há sempre algo pulsando; uma sirene, uma música de festa, um corpo que passa. O uso da câmera na mão e da lente anamórfica aproxima, comprime, e cria um sentimento de urgência. A exceção é a cena do espelho, o ponto de virada, quando a lente se fecha e o mundo de Gabriel também.

A relação entre Gabriel e Adriano é intensa e inquieta, feita de presença e ausência. Caio Macedo entrega uma atuação delicada, construída no olhar, na hesitação, na entrega contida, quase de uma inocência. Alejandro Claveaux equilibra vulnerabilidade e mistério, evitando a caricatura do “salvador” ou do “perdido”. A química entre os dois é crua, imprevisível, quase perigosa para não dizer tóxica.

Com trilha que vai de Letrux ao silêncio, o filme se move entre o documental e o delírio. O trabalho sexual, o luto e o vício aparecem não como choque, mas como consequência de um corpo que quer sentir e de um afeto que, às vezes, machuca mais do que cura.

Ruas da Glória é um retrato sobre o amor e seus desastres. Sobre a solidão que nem o corpo do outro resolve. Sobre a cidade que continua viva enquanto a gente desaba por dentro. Felipe Sholl filma com coragem e intimidade, transformando o caos noturno do Rio num espelho daquilo que ainda tentamos entender em nós mesmos.

Você encontra Ruas da Glória no Festival do Rio .
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Caramelo: O Brasil em Quatro Patas

A primeira cena de Caramelo já entrega tudo: um vira-lata faminto, um frango à mostra e Waldick Soriano cantando “Eu Não Sou Cachorro Não”. É quase uma síntese do país; a fome, o improviso e a trilha sonora nostálgica embalando o caos. Dirigido e roteirizado por Diego Freitas, o novo filme da Netflix tenta abrasileirar o subgênero dos “filmes de jornada canina” ao apostar num símbolo nacional. E embora o vira-lata do título seja o foco principal, o filme acaba dividindo o protagonismo entre o cão e seu dono, um chef de cozinha que também tem muito a aprender sobre sobrevivência.

Pedro (Rafael Vitti), um chef prestes a realizar o sonho de abrir seu restaurante, tem a vida virada do avesso ao descobrir um câncer. O ponto de virada vem em forma de quatro patas e olhar pidão: Caramelo, um vira-lata que muda o rumo da história, e a forma como Pedro enxerga a própria vida. É o tipo de sinopse que poderia facilmente escorregar para o sentimentalismo, mas Diego Freitas equilibra emoção e crítica social com alguma astúcia.

O filme não é sobre um cachorro “fofo”, é sobre o que ele representa. O caramelo é o retrato do Brasil real: abandonado, resistente e, ainda assim, disposto a oferecer afeto. De acordo com dados recentes da OMS, o país tem cerca de 30 milhões de animais abandonados — metade deles são cães. Estima-se que cerca de 10 milhões vivem nas ruas, e os abrigos públicos e privados estão constantemente lotados, com capacidade muito abaixo da demanda. Ou seja, a cena do cachorro roubando frango não é ficção: é um recorte do cotidiano de qualquer esquina.

Rafael Vitti encontra aqui um papel que foge da estética “galã de novela” e funciona bem. Ele entrega um personagem contido, atravessado pela solidão e pelo medo do tempo. O contraponto vem de Amendoim, o cãozinho real que interpreta Caramelo, e rouba o filme com carisma puro. Freitas acerta ao usar o cachorro como metáfora do país: alegre, sobrevivente e eternamente improvisado.

Visualmente, o filme tem um pé no realismo e outro no pop, talvez um reflexo da própria Netflix tentando domesticar a precariedade. A trilha sonora ajuda, as cenas em São Paulo têm textura e o elenco de apoio (incluindo Paola Carosella, em um papel pequeno mas simpático) sustenta o tom de humanidade.

Mas o maior mérito de Caramelo está fora da tela: os 60 cães usados nas filmagens foram resgatados e adotados pela própria equipe. Num país onde a cada esquina há um olhar canino pedindo cuidado, esse gesto transforma a ficção em ação e conscientização.

No fim, Caramelo é sobre o que sobra quando a pressa e a indiferença passam: o olhar de um animal abandonado que ainda acredita na gente. E talvez, no meio de tanto cinismo, seja disso que o Brasil mais precise — um pouco de lealdade, mesmo depois de tantos perrengues.

Você encontra Caramelo na Netflix.

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Perrengue Fashion: Quando o riso encontra o Recomeço

Há algo de muito especial em ver uma comédia brasileira ocupar o espaço de destaque em um festival. Perrengue Fashion, dirigido por Flávia Lacerda e protagonizado por Ingrid Guimarães, representa esse marco; não apenas por abrir espaço para o humor, mas por mostrar que a comédia também pode provocar reflexão, revisitar afetos e nos confrontar.

Paula Pratta (Guimarães) é uma influenciadora de moda que vive num universo de filtros, campanhas e hashtags. Quando o filho (Filipe Bragança) abandona tudo para se dedicar a um espaço de permacultura na Amazônia, ela se vê obrigada a atravessar a floresta e, com isso, a si mesma. A jornada, que começa como uma busca desesperada pelo filho para participar de uma campanha publicitária fashion, transforma-se numa travessia sobre o que realmente importa.

Flávia Lacerda conduz a narrativa com leveza, sem perder de vista a humanidade dos personagens. Ingrid Guimarães, já reconhecida por sua força cômica, entrega aqui uma atuação madura, divertida, mas também sensível. Há um brilho de vulnerabilidade em Paula: a mulher que precisou ser tudo sozinha, que venceu barreiras sociais, e que agora tenta controlar o futuro do filho como forma de garantir a própria segurança emocional. É nesse controle que mora o drama silencioso da personagem e a comédia surge justamente no atrito entre a fantasia do mundo perfeito e o colapso inevitável da vida real.

O roteiro, assinado por Ingrid, Edu Araújo, Célio Porto e Marcelo Saback, encontra equilíbrio entre humor e crítica. Os diálogos permitem que o riso se converta em afeto. Há momentos genuinamente engraçados, muito pela química entre Ingrid e Rafa Chalub, que forma com ela uma dupla improvável e irresistível. Chalub, vindo das redes sociais, surpreende pela naturalidade.

Mas Perrengue Fashion vai além da comédia de choque cultural. Ele fala sobre as mães solo que carregam o peso de criar sozinhas, sobre a geração que precisa reaprender a escutar os filhos, e sobre o desconforto de sair da zona de conforto, seja ela o feed do Instagram ou o apartamento de classe média.

No fundo, é um filme sobre recomeço. Sobre quando a floresta, literal e simbólica, obriga a gente a tirar os saltos, pisar na terra e lembrar quem éramos antes de tudo virar performance, antes de tudo ser para o outro, quando era por nós.

Ingrid Guimarães prova, mais uma vez, que sabe rir de si mesma e transformar esse riso em algo maior: empatia. Perrengue Fashion faz rir, mas também faz pensar.

Você encontra Perrengue Fashion nos cinemas a partir do dia 9 de Outubro.

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In-I in Motion — Corpo que Dança o Próprio Medo

Ontem assisti In-I in Motion no Festival do Rio. Dirigido e estrelado por Juliette Binoche, o filme parte de um gesto de coragem: o de se colocar vulnerável diante da arte e da própria limitação.

Em 2007, Binoche decidiu se afastar do cinema para criar um espetáculo de dança com o coreógrafo Akram Khan. O acordo entre os dois era simples e simbólico; ela o ajudaria a se tornar um ator melhor, e ele a ensinaria a dançar. Dessa troca nasceu o espetáculo In-I, e agora o filme, que mistura bastidores, ensaios e performance em um só movimento.

É curioso observar uma atriz do tamanho de Binoche se despindo da segurança da atuação para explorar um novo corpo. O documentário registra o processo cru: ensaios longos, tropeços, cansaço, frustrações e momentos de descoberta. Há algo de profundamente humano em vê-la aprender a respirar de outro jeito, cair e levantar, buscar o ritmo com o corpo inteiro. A dança que nasce do erro é, talvez, a mais verdadeira.

Em muitos momentos, In-I in Motion se torna um espelho da relação entre Binoche e Khan,  dois artistas tentando acessar o que há de mais autêntico no outro. Entre o atrito e a parceria, o filme encontra sua pulsação. É arte lapidando arte.

Durante o festival, Binoche comentou que não gostou completamente do resultado final e que o espetáculo completo ao fim foi uma decisão da distribuidora. Ela trabalha em um novo corte, trinta minutos mais curto. E faz sentido: há um respiro que o filme ainda busca, uma leveza que cabe melhor em sua proposta.

Mas o que mais me tocou foi o que ela disse após a sessão: que todos temos um artista dentro de nós, e que o desafio é vencer o medo de acessá-lo. Em In-I in Motion, ela faz exatamente isso,  enfrenta o medo com o corpo, sem máscaras, sem controle, sem se esconder.

Como espectadora, admirei a coragem. Como artista, senti vontade de me mover também,  de errar mais, tentar mais, existir mais. In-I in Motion não é apenas um filme sobre dança; é sobre libertar o corpo da exigência de perfeição.

No fim, o essencial permanece: o instante em que o medo se transforma em movimento.

Você encontra In i In Motion no Festival do Rio.

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Alpha — Corpo como Contágio e Salvação

Alguns filmes não terminam quando a tela escurece, eles permanecem dentro da gente, como uma febre. Alpha, novo longa de Julia Ducournau, é exatamente isso: um filme que arde, coça e não cicatriza.

Escrito e dirigido pela cineasta que redefiniu o horror corporal com Raw e Titane, Alpha é, antes de tudo, um mergulho na carne; mas uma carne que apodrece e se desfaz em pó, que não grita, mas silencia. Um drama familiar que começa íntimo e termina apocalíptico, questionando o que acontece quando o amor e a infecção se tornam indistintos.

Assisti Alpha no Festival do Rio  e confesso: minhas expectativas eram enormes. Julia Ducournau é minha diretora preferida. Há algum tempo, quando me perguntaram quem eu mais admirava no cinema, não soube responder. Só soube depois de ver Raw e Titane. Ali entendi que o cinema dela me atravessa de um jeito raro: é físico, feminino e selvagem. Ela filma o corpo como quem filma a alma.

E Alpha reafirma isso. Já na cena inicial, uma menina desenha nas feridas do homem que cuida dela, ligando cicatrizes como quem tenta reconstruir uma constelação perdida. É belo e incômodo, quase impossível desviar o olhar. A câmera de Ducournau tem essa delicadeza brutal: a de nos fazer olhar mesmo quando queremos desviar.

“Não é um bom momento para sangrar.”

Quando o filme corta para o tio de Alpha se drogando, vi ali um eco de Réquiem para um Sonho. A agulha, a pele, o desespero. Mas o que mais me marcou foi a cena seguinte: Alpha, já adolescente, bêbada em uma festa, deixando que alguém tatue um “A” torto em seu braço. Naquele momento, me vi lembrando do que assistia aos treze, como Eu, Christiane F. e Skins. Aquela mistura de descoberta e autodestruição, o desejo de pertencer e o medo de se perder. Julia Ducournau entende esse limiar como poucos, o instante em que o corpo quer ser livre e acaba virando prisão.

O filme é uma grande odisseia pandêmica. A infecção aqui é tanto literal quanto simbólica: corpos que se tornam mármore antes de se dissolver em pó branco. O medo se espalha, e a sociedade se desintegra — um reflexo de tudo o que vivemos, do isolamento, da paranoia, da falta de toque. Há um momento em que a mãe de Alpha, interpretada de forma arrebatadora por Golshifteh Farahani, limpa o vômito da filha e descobre o corte fresco da tatuagem, e eu senti o nó na garganta de quem ama e teme ao mesmo tempo.

Tahar Rahim está esplêndido como o tio, um corpo frágil, doente e cheio de culpa. A relação entre os três: mãe, filha e irmão,  é o coração pulsante do filme. É onde Ducournau transforma o horror em ternura, a doença em vínculo.

E como sempre, a trilha sonora é um personagem à parte. Quando Portishead começa a tocar logo no início, senti aquele arrepio que só o cinema dela provoca,  como se cada batida de som fosse uma gota de sangue caindo em câmera lenta.

“Deve ser um inferno ser criança hoje em dia.”

Sim, o último ato se estende demais, com saltos temporais um pouco confusos. Mas mesmo ali, há uma coerência emocional: o caos é parte da experiência. Alpha é um filme sobre o colapso,  do corpo, da família, do mundo.

Saí da sessão com a sensação de estar coberta pelo mesmo pó branco que domina a tela. Como espectadora, senti o incômodo físico; como roteirista, admirei a coragem. E como mulher, me reconheci naquele gesto final,  o de tentar religar a carne rasgada de alguém.

No fim, Alpha não é sobre vírus. É sobre o contágio que é amar alguém até o limite da dor. E talvez seja por isso que eu continue pensando nele — e em Julia Ducournau — muito depois que a luz do cinema se apagou.

Você encontra Alpha no Festival do Rio.

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GOAT — Entre o Corpo, o Mito e o Preço da Grandeza

Ontem eu assisti GOAT. Dormi com ele e acordei com ele, e talvez isso diga mais sobre o filme do que qualquer análise técnica. Porque GOAT reverbera. Incomoda. Fica. E talvez fique justamente porque toca num ponto que o cinema raramente se atreve a encarar com tanta brutalidade: a dor física e simbólica do esporte.

Dirigido por Justin Tipping e apadrinhado por Jordan Peele, o filme acompanha Cameron “Cam” Cade (Tyriq Withers), um jovem quarterback em ascensão que, após uma lesão quase fatal, recebe uma segunda chance das mãos do seu maior ídolo, Isaiah White (Marlon Wayans). O que começa como um sonho se transforma em um pesadelo ritualístico — um mergulho na masculinidade tóxica, na idolatria e nos limites entre treino, tortura e transcendência.

O título GOATGreatest of All Time — é mais do que uma sigla de grandeza; é uma sentença. A busca pelo “melhor de todos” se torna literal e monstruosa, quando a linhagem dos GOATs é revelada como uma sucessão de corpos sacrificados, sangue transferido, poder herdado. Há algo de religioso e profano nesse ciclo: cada geração de atletas devora a anterior, numa metáfora explícita da sociedade que consome seus heróis até o osso.

Como espectadora e como roteirista, me vi dividida. Há uma ideia potente ali; um terror corporal que conversa com a pressão do desempenho, com o corpo como campo de guerra e com a mente como campo minado. Há momentos em que o filme encontra essa carne pulsante, principalmente quando Cam treina sob o sol cortante do deserto, e o suor parece se misturar à loucura. Mas entre o segundo e o terceiro ato, a narrativa se perde: as metáforas se tornam literais demais, o visual repete fórmulas, e o clímax parece apressado;  mais preocupado em chocar do que em aprofundar.

Como esportista, reconheço o que o filme tenta dizer: o sacrifício, a cobrança, o vazio depois da glória. Aquele lugar em que só a dor te faz seguir em frente. Mas como alguém que vive o cinema, senti falta de ritmo, de sutileza e de consistência visual. A fotografia e a montagem flertam com algo interessante: os flashes em raio X, a mudança de temperatura de cor,  mas acabam se tornando excessivas, previsíveis.

Mesmo assim, GOAT me tocou num ponto íntimo: essa mistura entre corpo e mente, entre fé e dor, entre o sonho e o pesadelo de ser “o melhor”. Há uma linha fina entre superação e autodestruição, e o filme caminha exatamente sobre ela, tropeçando, às vezes, mas deixando rastros.

No fim, o sangue que escorre do corpo de Cam é o mesmo que escorre de qualquer um que já tentou ser perfeito demais em algo. GOAT não é um filme redondo, mas é um espelho rachado — e às vezes é neles que a gente mais se reconhece.

Você encontra The Goat nos Cinemas.

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Rabia – As Esposas do Estado Islâmico (2024)

Assisti Rabia na sessão de abertura da 2ª edição do Festival de Filmes Incríveis e saí da sala em silêncio. Com aquele silêncio pesado, cheio de pensamento. É um filme que não grita. Ele murmura. Ele aperta. Ele marca.

Inspirado na história real da marroquina Faitha Mejjati (a temida Oum Adam), o longa de Mareike Engelhardt, em sua estreia como diretora, mergulha num dos aspectos menos explorados (e mais assustadores) do regime do Daesh: as madafas, casas onde jovens mulheres ocidentais, convertidas e doutrinadas, aguardavam para se tornarem esposas dos combatentes.

Acompanhamos Jessica, uma jovem francesa, que troca a promessa de liberdade por uma cela invisível em Raqqa. Inicialmente deslumbrada pela promessa de pertencimento e fé, ela logo se vê nas mãos de Madame (vivida por Lubna Azabal), uma figura carismática, fanática e cruel. Uma verdadeira regente do silêncio, da manipulação e do apagamento feminino.

O filme acerta ao fugir do sensacionalismo: não mostra a violência diretamente, mas ela está ali; nos ruídos abafados, nas portas trancadas, nos olhares desviados. A encenação usa o fora de campo como arma estética e emocional. O som, o silêncio, as marcas no corpo e na alma falam mais alto que qualquer diálogo.    Mereike Engelhardt entende o poder do não dito, e é nesse não dito que o horror cresce.

A fotografia de Agnès Godard é outro destaque: claustrofóbica quando precisa ser, etérea em alguns momentos, ela acompanha visualmente a transformação (e deformação) de Jessica: de uma jovem idealista a alguém dilacerada e moldada pela dor. A trilha sonora de David Chalmin, tênue e incômoda, reforça essa espiral sombria.

Mas talvez o maior acerto de Rabia seja o roteiro. Ele não explica, não paternaliza, não julga. Ele observa. Ele denuncia. E nos convida a refletir. Mulheres que buscam uma nova vida, uma identidade, acabam encontrando o contrário disso: submissão, vigilância, apagamento.

E há uma reviravolta cruel: o ciclo da violência se perpetua. Jessica se torna Oum Rabia (“raiva”), e a vítima começa a reproduzir aquilo que sofreu. A cena da virada é seca, sem alarde e por isso mesmo tão devastadora.

Rabia é, sim, duro. Mas necessário. Um retrato quase inédito dessas casas-prisões comandadas por mulheres, onde outras mulheres eram treinadas, moldadas e, muitas vezes, destruídas. E é também um lembrete: ainda hoje, muitas dessas meninas continuam presas no campo de refugiados de Al-Hol, vivendo o rescaldo do extremismo.

No final, o filme não oferece respostas fáceis, mas uma fagulha de esperança. E a pergunta que fica, ecoando depois dos créditos, é: quantas outras Jessicas ainda estão por aí, acreditando que estão sendo salvas, quando na verdade estão sendo silenciadas?

Você encontra Rabia- As Esposas do Estado Islâmico nos Cinemas a partir do dia 21 de Agosto .

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