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In-I in Motion — Corpo que Dança o Próprio Medo

Ontem assisti In-I in Motion no Festival do Rio. Dirigido e estrelado por Juliette Binoche, o filme parte de um gesto de coragem: o de se colocar vulnerável diante da arte e da própria limitação.

Em 2007, Binoche decidiu se afastar do cinema para criar um espetáculo de dança com o coreógrafo Akram Khan. O acordo entre os dois era simples e simbólico; ela o ajudaria a se tornar um ator melhor, e ele a ensinaria a dançar. Dessa troca nasceu o espetáculo In-I, e agora o filme, que mistura bastidores, ensaios e performance em um só movimento.

É curioso observar uma atriz do tamanho de Binoche se despindo da segurança da atuação para explorar um novo corpo. O documentário registra o processo cru: ensaios longos, tropeços, cansaço, frustrações e momentos de descoberta. Há algo de profundamente humano em vê-la aprender a respirar de outro jeito, cair e levantar, buscar o ritmo com o corpo inteiro. A dança que nasce do erro é, talvez, a mais verdadeira.

Em muitos momentos, In-I in Motion se torna um espelho da relação entre Binoche e Khan,  dois artistas tentando acessar o que há de mais autêntico no outro. Entre o atrito e a parceria, o filme encontra sua pulsação. É arte lapidando arte.

Durante o festival, Binoche comentou que não gostou completamente do resultado final e que o espetáculo completo ao fim foi uma decisão da distribuidora. Ela trabalha em um novo corte, trinta minutos mais curto. E faz sentido: há um respiro que o filme ainda busca, uma leveza que cabe melhor em sua proposta.

Mas o que mais me tocou foi o que ela disse após a sessão: que todos temos um artista dentro de nós, e que o desafio é vencer o medo de acessá-lo. Em In-I in Motion, ela faz exatamente isso,  enfrenta o medo com o corpo, sem máscaras, sem controle, sem se esconder.

Como espectadora, admirei a coragem. Como artista, senti vontade de me mover também,  de errar mais, tentar mais, existir mais. In-I in Motion não é apenas um filme sobre dança; é sobre libertar o corpo da exigência de perfeição.

No fim, o essencial permanece: o instante em que o medo se transforma em movimento.

Você encontra In i In Motion no Festival do Rio.

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Até o próximo texto.

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Alpha — Corpo como Contágio e Salvação

Alguns filmes não terminam quando a tela escurece, eles permanecem dentro da gente, como uma febre. Alpha, novo longa de Julia Ducournau, é exatamente isso: um filme que arde, coça e não cicatriza.

Escrito e dirigido pela cineasta que redefiniu o horror corporal com Raw e Titane, Alpha é, antes de tudo, um mergulho na carne; mas uma carne que apodrece e se desfaz em pó, que não grita, mas silencia. Um drama familiar que começa íntimo e termina apocalíptico, questionando o que acontece quando o amor e a infecção se tornam indistintos.

Assisti Alpha no Festival do Rio  e confesso: minhas expectativas eram enormes. Julia Ducournau é minha diretora preferida. Há algum tempo, quando me perguntaram quem eu mais admirava no cinema, não soube responder. Só soube depois de ver Raw e Titane. Ali entendi que o cinema dela me atravessa de um jeito raro: é físico, feminino e selvagem. Ela filma o corpo como quem filma a alma.

E Alpha reafirma isso. Já na cena inicial, uma menina desenha nas feridas do homem que cuida dela, ligando cicatrizes como quem tenta reconstruir uma constelação perdida. É belo e incômodo, quase impossível desviar o olhar. A câmera de Ducournau tem essa delicadeza brutal: a de nos fazer olhar mesmo quando queremos desviar.

“Não é um bom momento para sangrar.”

Quando o filme corta para o tio de Alpha se drogando, vi ali um eco de Réquiem para um Sonho. A agulha, a pele, o desespero. Mas o que mais me marcou foi a cena seguinte: Alpha, já adolescente, bêbada em uma festa, deixando que alguém tatue um “A” torto em seu braço. Naquele momento, me vi lembrando do que assistia aos treze, como Eu, Christiane F. e Skins. Aquela mistura de descoberta e autodestruição, o desejo de pertencer e o medo de se perder. Julia Ducournau entende esse limiar como poucos, o instante em que o corpo quer ser livre e acaba virando prisão.

O filme é uma grande odisseia pandêmica. A infecção aqui é tanto literal quanto simbólica: corpos que se tornam mármore antes de se dissolver em pó branco. O medo se espalha, e a sociedade se desintegra — um reflexo de tudo o que vivemos, do isolamento, da paranoia, da falta de toque. Há um momento em que a mãe de Alpha, interpretada de forma arrebatadora por Golshifteh Farahani, limpa o vômito da filha e descobre o corte fresco da tatuagem, e eu senti o nó na garganta de quem ama e teme ao mesmo tempo.

Tahar Rahim está esplêndido como o tio, um corpo frágil, doente e cheio de culpa. A relação entre os três: mãe, filha e irmão,  é o coração pulsante do filme. É onde Ducournau transforma o horror em ternura, a doença em vínculo.

E como sempre, a trilha sonora é um personagem à parte. Quando Portishead começa a tocar logo no início, senti aquele arrepio que só o cinema dela provoca,  como se cada batida de som fosse uma gota de sangue caindo em câmera lenta.

“Deve ser um inferno ser criança hoje em dia.”

Sim, o último ato se estende demais, com saltos temporais um pouco confusos. Mas mesmo ali, há uma coerência emocional: o caos é parte da experiência. Alpha é um filme sobre o colapso,  do corpo, da família, do mundo.

Saí da sessão com a sensação de estar coberta pelo mesmo pó branco que domina a tela. Como espectadora, senti o incômodo físico; como roteirista, admirei a coragem. E como mulher, me reconheci naquele gesto final,  o de tentar religar a carne rasgada de alguém.

No fim, Alpha não é sobre vírus. É sobre o contágio que é amar alguém até o limite da dor. E talvez seja por isso que eu continue pensando nele — e em Julia Ducournau — muito depois que a luz do cinema se apagou.

Você encontra Alpha no Festival do Rio.

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Até o próximo texto.

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Rabia – As Esposas do Estado Islâmico (2024)

Assisti Rabia na sessão de abertura da 2ª edição do Festival de Filmes Incríveis e saí da sala em silêncio. Com aquele silêncio pesado, cheio de pensamento. É um filme que não grita. Ele murmura. Ele aperta. Ele marca.

Inspirado na história real da marroquina Faitha Mejjati (a temida Oum Adam), o longa de Mareike Engelhardt, em sua estreia como diretora, mergulha num dos aspectos menos explorados (e mais assustadores) do regime do Daesh: as madafas, casas onde jovens mulheres ocidentais, convertidas e doutrinadas, aguardavam para se tornarem esposas dos combatentes.

Acompanhamos Jessica, uma jovem francesa, que troca a promessa de liberdade por uma cela invisível em Raqqa. Inicialmente deslumbrada pela promessa de pertencimento e fé, ela logo se vê nas mãos de Madame (vivida por Lubna Azabal), uma figura carismática, fanática e cruel. Uma verdadeira regente do silêncio, da manipulação e do apagamento feminino.

O filme acerta ao fugir do sensacionalismo: não mostra a violência diretamente, mas ela está ali; nos ruídos abafados, nas portas trancadas, nos olhares desviados. A encenação usa o fora de campo como arma estética e emocional. O som, o silêncio, as marcas no corpo e na alma falam mais alto que qualquer diálogo.    Mereike Engelhardt entende o poder do não dito, e é nesse não dito que o horror cresce.

A fotografia de Agnès Godard é outro destaque: claustrofóbica quando precisa ser, etérea em alguns momentos, ela acompanha visualmente a transformação (e deformação) de Jessica: de uma jovem idealista a alguém dilacerada e moldada pela dor. A trilha sonora de David Chalmin, tênue e incômoda, reforça essa espiral sombria.

Mas talvez o maior acerto de Rabia seja o roteiro. Ele não explica, não paternaliza, não julga. Ele observa. Ele denuncia. E nos convida a refletir. Mulheres que buscam uma nova vida, uma identidade, acabam encontrando o contrário disso: submissão, vigilância, apagamento.

E há uma reviravolta cruel: o ciclo da violência se perpetua. Jessica se torna Oum Rabia (“raiva”), e a vítima começa a reproduzir aquilo que sofreu. A cena da virada é seca, sem alarde e por isso mesmo tão devastadora.

Rabia é, sim, duro. Mas necessário. Um retrato quase inédito dessas casas-prisões comandadas por mulheres, onde outras mulheres eram treinadas, moldadas e, muitas vezes, destruídas. E é também um lembrete: ainda hoje, muitas dessas meninas continuam presas no campo de refugiados de Al-Hol, vivendo o rescaldo do extremismo.

No final, o filme não oferece respostas fáceis, mas uma fagulha de esperança. E a pergunta que fica, ecoando depois dos créditos, é: quantas outras Jessicas ainda estão por aí, acreditando que estão sendo salvas, quando na verdade estão sendo silenciadas?

Você encontra Rabia- As Esposas do Estado Islâmico nos Cinemas a partir do dia 21 de Agosto .

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Até o próximo texto.

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A Semente do Fruto Sagrado

A Semente do Fruto Sagrado emerge como uma obra rica em camadas, refletindo não apenas a realidade angustiante do Irã contemporâneo, mas também a corajosa determinação de seu diretor e roteirista, Mohammad Rasoulof, que, com talento e criatividade, conseguiu produzir este filme em um ambiente de opressão e censura. Realizado clandestinamente, a obra não só se posiciona como um grito de resistência cultural, mas também como um poderoso relato pessoal de sua luta contra um regime autoritário que o persegue.

Inspirado pela trágica morte de Mahsa Amini, que acendeu uma onda de protestos pela liberdade no Irã, o filme segue a vida de Iman (Missagh Zareh), um investigador judicial cujo mundo é desmantelado por sua paranoia e pela corrupção que o cerca. Ao perceber que sua esposa e filhas não compartilham suas opiniões políticas, Iman inicia uma espiral de desconfiança e tensão familiar. À medida que o conflito se intensifica, a narrativa se transforma em um espelho das lutas sociais que estão acontecendo no país.

O que torna A Semente do Fruto Sagrado ainda mais impressionante é o contexto em que foi desenvolvido. Rasoulof, que já enfrentou a prisão e perseguições por suas obras críticas ao regime iraniano, consagrou seus esforços à realização deste filme de forma clandestina, consciente dos riscos que isso acarretaria. Esta coragem é palpável em cada quadro, e o peso de sua realidade pessoal se entrelaça com a história que ele conta. Rasoulof não apenas narra uma trama de ficção; ele expõe as duras realidades de viver em um estado que persegue e silencia vozes dissidentes.

O roteiro é meticulosamente elaborado, utilizando simbolismo e metáforas que conectam a tragédia familiar com a luta mais ampla pela liberdade no Irã. As interações entre os personagens são repletas de nuances, refletindo o estado psicológico de uma nação frente à opressão. O equilíbrio entre a ficção e a realidade é feito com uma sofisticação que permite ao espectador vivenciar a tensão crescente, onde cada escolha do protagonista é uma questão de vida ou morte, não apenas para ele, mas para sua família. Visualmente, o filme é impressionante, com planos que capturam a beleza e a agonia do cotidiano iraniano, criando uma conexão emocional que transcende cultura e geografia.

Rasoulof transforma uma narrativa de opressão em uma exploração profunda das relações familiares. A desconexão entre Iman e suas filhas e esposa representa não apenas a fragmentação do núcleo familiar, mas também como o totalitarismo infiltra e destrói os laços humanos. A luta pela liberdade de expressão e a resistência à opressão são palpáveis em cada cena, tornando o filme uma alegoria da condição humana em tempos de crise.

A Semente do Fruto Sagrado é uma obra audaciosa que não apenas destaca a opressão enfrentada no Irã, mas se torna um testemunho da resistência criativa frente à censura. A coragem de Mohammad Rasoulof em realizar este filme é um ato de coragem que ressoa com todos aqueles que defendem a liberdade de expressão. Com uma narrativa poderosa, o filme desafia o público a refletir sobre a luta pela justiça e a necessidade de coragem para resistir.

Você encontra A Semente do Fruto Sagrado nos Cinemas.

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Até o próximo texto.

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Anora

Desde que Sean Baker surgiu no cenário cinematográfico com obras marcantes como Tangerina (2015) e Projeto Florida (2017), seu nome tem sido sinônimo de autenticidade e experimentação no cinema independente. Com Anora, Baker não só consolida seu status como um dos criadores mais ousados de sua geração, mas também abre caminho para a temporada de prêmios, posicionando seu novo filme como um forte concorrente ao Oscar de 2025 – especialmente após ser coroado com a Palma de Ouro em Cannes 2024.

Baker, que assina tanto o roteiro quanto a direção, prova novamente ser um exímio observador da humanidade, com um talento único para explorar e humanizar personagens marginalizados. Sob o pretexto de uma comédia romântica, ele constrói em Anora um filme que transborda crítica social, nuances emocionais e uma sensibilidade estética que é ao mesmo tempo crua e deslumbrante. O resultado é uma história que desconstrói o conto de fadas empacotado em Hollywood e entrega algo infinitamente mais real, mais doloroso e mais memorável.

O roteiro é um dos pilares mais fortes do filme. Sean Baker consegue equilibrar com diálogos naturalistas, momentos de leveza cômica e reflexões sobre poder, classe social e trabalho sexual. A protagonista Ani ou Anora, como é chamada ao longo do filme ganha profundidade e camadas como raramente se vê em personagens femininas. Interpretada por Mikey Madison em sua performance mais impactante até agora, Ani é uma protagonista complexa em todos os sentidos. Vivendo como trabalhadora do sexo no Brooklyn, Ani encara os desafios diários de sua rotina com uma mistura de pragmatismo e cuidado: fazendo piadas, comendo no meio do expediente e conversando com amigas, enquanto navega por um ambiente cercado de preconceitos.

A genialidade do roteiro está em construir sua trajetória sem didatismos ou paternalismos. Ani, com sua personalidade forte e vulnerável, não é apresentada como vítima absoluta nem como heroína, mas como uma mulher cuja humanidade é mostrada em cada cena.  Madison entrega uma interpretação recheada de nuances, mesclando força e ingenuidade. É impossível não se conectar com sua Ani, uma personagem cujas escolhas imprudentes têm consequências trágicas, mas que nunca perde sua dignidade. A relação da personagem com Ivan (Mark Eydelshteyn), o filho de um oligarca russo, revela a disparidade crua entre aqueles que sofrem com a desigualdade social e aqueles que permanecem acima de quaisquer consequências.

Sean Baker não se contenta em contar uma história; ele transforma Anora em uma experiência cinematográfica quase tátil. A direção é precisa, criativa e permeada por uma energia que captura tanto o caos quanto a esperança de sua narrativa. Baker sabe perfeitamente quando desacelerar para explorar os momentos mais íntimos – entre Ani e suas amigas ou mesmo suas interações mais vulneráveis com Ivan – e quando escalar a trama para o puro absurdo.

No segundo ato, quando a família de Ivan entra na história e uma comitiva de capangas chega ao Brooklyn para anular o casamento do casal, Baker eleva a comédia ao limite do tragicômico. O caos instaurado nas situações – tragicômicas e absurdas – que se seguem é um triunfo criativo, ao mesmo tempo em que serve como veículo para uma crítica contundente às dinâmicas de poder. Baker expõe o ridículo dessas situações, mas nunca de forma gratuita, usando o exagero como forma de intensificar o impacto emocional e crítico do longa.

A fotografia  é, simplesmente, espetacular. O filme transita entre momentos de intensa intimidade e sequências grandiosas embaladas pela vibrante estética neon do Brooklyn. A fotografia captura a pulsação da cidade: é ao mesmo tempo elétrica e sufocante, delicada e brutal.  Sean Baker sabe como usar a paleta de cores saturada para amplificar a viagem emocional de sua protagonista – seja nos tons quentes que iluminam uma noitada de sonhos com Ivan ou os tons frios e desolados que refletem as duras investidas do mundo ao redor de Ani.

A trilha sonora também brilha como um elemento-chave. Sua força vai além de complementar a narrativa; ela é uma extensão dos eventos do filme, capaz de carregar peso dramático em cenas silenciosas e intensificar o ritmo das sequências mais caóticas. A escolha precisa de cada faixa, como TATU na trilha sonora é um golpe de mestre: ao mesmo tempo nostálgica e provocativa, sua presença musical ressoa de forma poderosa, contribuindo para um ambiente que mistura o clássico e o moderno, o leve e o pesado.

Embora Anora seja vendido como uma comédia romântica – e, em determinados momentos, flerte com esse tom –, é na desconstrução do gênero que a obra realmente brilha. Baker utiliza as convenções do conto de fadas moderno para expor a disparidade de classes e as injustiças intrínsecas entre aqueles que têm poder e aqueles que vivem à margem.

Ivan, o filho de uma família rica que age com desdém sobre suas ações, é o completo oposto de Ani, que precisa lidar com todas as consequências de suas escolhas. Enquanto ele retorna para a Rússia sem nenhuma marca de sua experiência, ela é deixada para recolher os pedaços da vida que tentou construir. O filme não dá respostas fáceis nem oferece conforto. O final é desconfortável, porém autêntico, refletindo de forma honesta as desigualdades de um mundo onde poder e privilégio ditam as regras.

Anora não é apenas um grande filme; é uma obra que reafirma o talento de Sean Baker. Em um ano competitivo, é difícil imaginar que o filme não continue ganhando atenção na temporada de prêmios. É um filme que transcende os rótulos, ao mesmo tempo acessível e desafiador, comédia e drama, deslumbrante e desconfortável.

Você encontra Anora a partir do dia 23 de Janeiro nos Cinemas.

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A Substância

Quem assistir A Substância, o novo filme de Demi Moore, certamente não o esquecerá. Ambientado na vibrante cidade de Los Angeles, o filme abre com um plano da icônica Calçada da Fama de Hollywood, onde uma nova estrela está sendo instalada. Essa estrela pertence à atriz Elisabeth Sparkle, protagonizada por Moore, e logo é vista desintegrando-se, rachada e pisoteada — um prenúncio simbólico dos temas centrais da narrativa: juventude, beleza e pertencimento.

Elisabeth, com mais de 50 anos e recém-demitida de um programa de TV devido à baixa audiência, recorre a medidas extremas para recriar uma versão perfeita de si mesma. O que começa como um filme feminista, abordando preconceito etário e padrões de beleza, rapidamente se transforma em algo distintamente inesquecível e profundo. Sparkle recorre a um misterioso processo de “clonagem caseira”, com a ajuda de uma droga ilícita, resultando no nascimento de Sue, uma jovem e alegre sósia (interpretada por Margaret Qualley) que literalmente emerge de sua coluna vertebral.

Esse ritual de rejuvenescimento, repetido a cada sete dias, está no cerne da crítica do filme. A condição de troca cíclica de corpos revela as consequências devastadoras e enfatiza a transitoriedade da juventude e da beleza. Elisabeth é apresentada como a “matriz,” vivendo sob a constante pressão do descontentamento corporal à medida que envelhece, metaforicamente ilustrando que até a rainha má já foi uma princesa, assombrada pelo reflexo que lhe lembra do tempo que roubou sua juventude.

À medida que Elisabeth recorre à sua versão jovem para alcançar seus objetivos, inicialmente consegue o que sempre desejou. No entanto, a narrativa leva um rumo sombrio e visceral quando começamos a ver os efeitos adversos de suas escolhas. A Substância não economiza em elementos de horror corporal, repleto de sangue e momentos profundamente inquietantes. Um marco para fãs de Julia Ducournau, fortemente conhecida pelos filmes de horror corporal que vão de curtas a longas.

A atuação de Demi Moore, como uma estrela em declínio, é desprovida de glamour. Ela abraça a crueza e a vulnerabilidade do papel, destacando a beleza deteriorada de Elisabeth Sparkle. “De certa forma, eu senti que queria fazer isso”, ela explica. “Parte do que tornou interessante foi ir a um lugar tão cru e vulnerável, para realmente me desprender. E foi bastante libertador em muitos aspectos.”

A narrativa também desconstrói expectativas associadas a contos de fadas, onde a conclusão do filme integra uma linha impactante de Dennis Quaid, “meninas bonitas devem sempre sorrir,” sublinhando as pressões persistentes em torno da feminilidade e dos padrões de beleza. Esse diálogo, uma crítica ao idealismo dos contos de princesas, reforça a brutalidade da realidade abordada no filme.

Visualmente, a diretora Coralie Fargeat cria um universo que mistura glamour, medo e asco. Sua direção, somada às performances estelares de Moore e Qualley, é vital para a eficácia do filme como uma alegoria sobre os perigos da obsessão pela perfeição física. A montagem do filme, com transições secas e cruas, mantém o espectador imerso na brutalidade da narrativa.

“O ponto crítico está na sensação contínua de que o tempo está se esgotando,” comenta Fargeat. Esse sentimento de urgência é tangível ao longo de todo o filme, enfatizando a efemeridade da beleza e a pressão impiedosa para mantê-la.

A estreia de A Substância no Festival de Cannes gerou muitos comentários, e o filme rapidamente se tornou um dos mais discutidos da edição de 2024. Atualmente, está nos cinemas e chegará ao catálogo da MUBI em 31 de outubro, oferecendo uma narrativa perturbadora e relevante.

A exploração do “body horror” no filme não é meramente para causar choque, mas para refletir as barreiras físicas, corporais e emocionais que as pessoas atravessam para alcançar os padrões de beleza. Em uma era de procedimentos estéticos sem fim, o filme apresenta uma perspectiva moderna, crítica e, em muitos momentos, surrealista sobre a obsessão pela juventude e pela aparência.

A Substância é um filme que provoca reflexão, desconforto e admiração, não apenas desafia os limites do horror convencional, mas também oferece uma crítica impactante à obsessão com a juventude e a beleza.

Você encontra A Substância nos cinemas e a partir do dia 31 de Outubro, na Mubi.

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Emilia Perez

Destaque no Festival de Cannes, “Emília Pérez” é uma das apostas mais fortes da França para a próxima edição do Oscar, na categoria de Melhor Filme Internacional. O longa, que será lançado nos cinemas brasileiros apenas em 2025, conquistou premiações e aclamação da crítica. Recentemente, abriu a 26ª edição do Festival do Rio, com sessões esgotadas, refletindo o grande entusiasmo em torno da produção.

Dirigido por Jacques Audiard (conhecido por “Ferrugem e Osso” e “O Profeta”), o filme foi rodado no México e é majoritariamente falado em espanhol. Emília Pérez mescla elementos de drama mexicano policial e musical para contar a história entrelaçada entre dois indivíduos em busca de um futuro mais promissor: Manitas del Monte (vivido por Karla Sofía Gascón, atriz espanhola de “Rebelde”), um chefe de cartel de drogas que sonha em se tornar mulher, e Rita Moro Castro (interpretada por Zoë Saldaña, de “Avatar: O Caminho da Água” e “Crash”), uma advogada desprestigiada que vê na oferta de ajudar Manitas uma chance de transformar sua própria vida.

O pacto entre eles exige que Manitas abandone seu passado no tráfico, incluindo sua família. Para Rita, a responsabilidade de resolver os detalhes práticos do plano gera uma sensação de urgência, que se reflete na narrativa acelerada do filme. Logo, Manitas se torna Emília Pérez, uma transformação que não só muda a vida de Rita, mas também impacta as vidas de outras duas mulheres: Jessi (Selena Gomez, de “Only Murders in the Building” e “Os Feiticeiros de Waverly Place”), a viúva de Manitas, que se vê presa numa mentira ao tentar viver com Emília, e Epifanía (Adriana Paz, de “Vis a Vis”), que, na busca por redenção, inicia uma organização de ajuda às pessoas desaparecidas, uma vez que o México é um dos países em que mais há desaparecidos.

Emília Pérez explora as jornadas de autodescobrimento dessas mulheres: Emília enfrenta a realidade de finalmente viver seu sonho, Rita navega a complexidade de alcançar sucesso e descobrir seu vazio internalizado, Jessi tenta reencontrar a felicidade com outro homem (Edgar Ramírez), e Epifanía aprende a viver sem medo e a amar novamente.

A música é um elemento central do filme, inserido organicamente na narrativa para reforçar emoções e temas. Diferente dos musicais clássicos como Moulin Rouge, Mamma Mia, ou até Os Miseráveis, a trilha sonora de Emília Pérez provoca uma ampla gama de sentimentos, desde intimidação e impacto até o desconforto.

Vale ressaltar que a fotografia e a coreografia são pontos altos do filme, enriquecendo ainda mais a experiência. A direção de fotografia captura as nuances das paisagens mexicanas e os momentos mais íntimos das personagens, enquanto as coreografias adicionam uma camada extra de expressividade e dinamismo às cenas. Não é à toa que Karla Sofía Gascón foi laureada com o prêmio de Melhor Atriz em Cannes, uma vitória que sublinha a força e a profundidade das atuações que caracterizam o longa-metragem Emília Pérez.

Com sua abordagem inovadora e rica em nuances humanas, Emília Pérez promete não apenas ser um forte concorrente em festivais internacionais, mas também conquistar o coração do público ao explorar temas universais de identidade, transformação e redenção.

 

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Anatomia de uma Queda

Anatomia de uma Queda  é um filme francês que combina suspense e drama de maneira eficaz. A trama, que se desenrola em um chalé nos Alpes, nos coloca diante de um enigma perturbador: a morte misteriosa do pai da família. A estrutura narrativa do filme é habilmente construída, mantendo o espectador constantemente em suspense, sem revelar de imediato o que aconteceu naquele fatídico dia, trazendo uma sensação de saber o que houve e em outrora não saber mais.

A atuação de Sandra Huller é notável, pois ela desempenha o papel da mulher alemã que se encontra no centro da suspeita e da controvérsia. Sua interpretação traz à tona uma gama de emoções, do desespero à determinação, à medida que ela luta para provar sua inocência. A dinâmica entre os personagens e as relações familiares complexas são exploradas de maneira profunda e envolvente, pois aqui não sabemos ao certo se foi um homicídio ou um suicídio, mas sabemos que ambos trazem camadas de uma relação familiar matrimonial de anos.

A direção de Justine Triet é singular, especialmente considerando que o filme a tornou a terceira mulher a vencer a Palma de Ouro em Cannes (2023). Sua abordagem metalinguística e a utilização da música alta como um elemento que contribui para o desconforto e a tensão são aspectos marcantes e fortes do filme. Essa escolha sonora contribui significativamente para a atmosfera opressiva e para a sensação de tragédia.

O longo e inusitado julgamento que se desenrola no filme acrescenta uma camada adicional de sufocamento e complexidade à narrativa, enquanto examina a natureza da culpa e da inocência. A ambiguidade persistente sobre o que realmente aconteceu mantém o espectador envolvido e curioso até o final.

Anatomia de uma Queda é uma obra que desafia as expectativas e oferece uma experiência cinematográfica intrigante. Sua combinação de suspense, drama e metalinguagem o torna um filme que provoca reflexões e discussões após a sua exibição, destacando o talento de Justine Triet como diretora e a capacidade do cinema francês de contar histórias complexas e envolventes.

Você encontra Anatomia de uma Queda no Festival do Rio e Mostra de São Paulo. E nos principais cinemas a partir do dia 22 de Fevereiro de 2024.

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Estranha Forma de Vida

“ Há alguns anos você me perguntou o que dois homens poderiam fazer vivendo juntos em um rancho.
Eu te respondo agora.
Eles podem cuidar um do outro, proteger um ao outro, fazer companhia um ao outro.”

 

Os filmes de faroeste ao longo da história do cinema consolidaram uma visão tradicional da masculinidade. Eles frequentemente apresentam heróis fortes, corajosos e heterossexuais, refletindo uma noção estereotipada de virilidade. Essa representação restrita da masculinidade contribui para a heteronormatividade, criando um ambiente onde personagens gays ou bissexuais raramente encontram espaço para existir.

No entanto, a filmografia de Pedro Almodóvar, diretor espanhol conhecido por suas obras inovadoras e provocativas, desafia essas convenções de gênero e sexualidade. Almodóvar frequentemente cria personagens masculinos complexos que exploram uma ampla gama de experiências e orientações sexuais.

Essa abordagem diversificada de Almodóvar contrasta fortemente com a falta de representação de homens gays nos filmes de faroeste, destacando a importância de oferecer narrativas variadas e inclusivas no cinema. Almodóvar demonstra como a arte cinematográfica pode ser uma plataforma para explorar a diversidade da masculinidade e, ao fazê-lo, contribui para uma representação mais completa e autêntica.

Estranha forma de vida, dirigido por Pedro Almodóvar e produzido pelo seu irmão, Augustin debutou esse ano (2023) em Cannes e trouxe atenção para além da heteronormatividade western. Estrelado por Ethan Hawke e Pedro Pascal, o filme que teve seu figurino assinado por Anthony Vaccarello também contou com Saint Laurent como produtor associado.

Com duração de 31 minutos, incorpora o universo da moda ao ter figurinos que dizem que a grife não trabalha apenas com roupas finas como os ternos e camisas que vemos o xerife e o cowboy utilizarem, mas também fazem roupas casuais como jaquetas. Seria um catálogo da própria Saint Laurent ou seria um ato político cinéfilo que diz que o faroeste é para todos? Ou mais que isso; seria uma abertura de caminho para curtas e média metragens serem exibidos no circuito comercial além de em grandes festivais?

Você encontra Estranha Forma de Vida nos cinemas e a partir do dia 20 de Outubro, na Mubi.

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