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Krishnamurti- A Revolução do Silêncio: Quando o Pensamento se cala e a Consciência escuta

Krishnamurti: A Revolução do Silêncio é um daqueles filmes que não se assiste; se vivencia. Dirigido por Françoise Ferraton, o documentário sobre o filósofo indiano Jiddu Krishnamurti convida o espectador a desacelerar, observar e, acima de tudo, silenciar. Saí do cinema em suspenso. O filme ecoa mais do que explica, e talvez esse seja o maior mérito: ele não busca converter, mas despertar.

A diretora utiliza imagens de arquivo, entrevistas e leituras de cadernos que vão de 1961 a 1984, ano do último diário do pensador. A estrutura é simples, quase transparente, porque o centro de tudo é a voz de Krishnamurti; uma voz calma, lúcida, que parece atravessar o tempo e sussurrar para o presente. Ele fala sobre o poder da observação, sobre como a consciência contém em si o sofrimento humano. Não apenas o sofrimento pessoal, mas o de toda a humanidade.

O filme começa com a fluidez de um rio. E é justamente nesse ritmo que Ferraton conduz a narrativa, um fluxo de imagens, pessoas, natureza. Aos poucos, a água dá lugar à terra, e a contemplação se torna espelho. Krishnamurti dizia que “ser livre é observar sem julgamento”, e o documentário parece filmar exatamente isso: o olhar que se liberta da pressa, da opinião, da necessidade de ter razão.

Mas é impossível sair ileso. A verdade, aqui, chega a ser sufocante. As imagens de imigrantes exaustos, famílias atravessando fronteiras em busca de abrigo, pessoas sem terra, sem casa, sem país, todas fugindo da guerra e da fome, dão corpo ao sofrimento coletivo de que Krishnamurti fala. É o retrato visível da consciência humana adoecida. O silêncio proposto por ele não é fuga, é enfrentamento. É o convite a enxergar o caos humano sem reagir com mais ruído, sem tentar curar o mundo antes de olhar para o que há dentro de nós.

O documentário percorre sua trajetória, da juventude na escola teosófica à vida na Inglaterra e depois na Califórnia, onde viveu seus últimos anos. Mas mais do que biografia, A Revolução do Silêncio é um estado de espírito. O filme não tenta explicar Krishnamurti; tenta sentir com ele.

“Você ouve a palavra ou o conteúdo da palavras?”

Entre as reflexões, uma frase permanece: “Compaixão é liberdade. E compaixão significa o fim do sofrimento.” É simples e devastador. Ser livre, afinal, é cessar a busca. É aceitar que talvez a verdadeira revolução seja interior, invisível e silenciosa.
Krishnamurti: A Revolução do Silêncio é um lembrete raro de que pensar nem sempre é entender;  às vezes é só respirar. E nesse respiro, algo muda.

Você encontra Krishnamurti no Festival do Rio .
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Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria: Maternidade, Colapso e o Teto que desaba sobre todas nós

Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria é um daqueles filmes que todo mundo precisa ver. Saí impactada da sessão no Festival do Rio e demorei dias para digerir tudo o que Mary Bronstein constrói aqui. É um filme que te atravessa; não por gritar, mas por expor com precisão e ironia o que significa ser mulher (e mãe) em colapso.

Mary Bronstein não filma apenas uma mulher à beira de um colapso, ela filma o colapso em si. Em Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria, Rose Byrne é Linda, uma mãe, psicóloga e sobrevivente de um cotidiano que parece conspirar contra ela. O teto literalmente desaba, e a metáfora não poderia ser mais óbvia  e mais dolorosamente real. Depois que a água invade o apartamento, Linda é obrigada a se mudar para um motel com a filha doente. O marido está sempre ausente, o terapeuta parece mais interessado em provocá-la do que em ajudá-la, e o mundo inteiro parece lhe exigir equilíbrio quando tudo o que ela precisa é de cinco minutos de silêncio e solitude. A vida desmorona em câmera lenta  e, de alguma forma, ainda assim ela precisa dar conta de tudo.

“Deve ser legal fazer as coisas para se divertir.”

O filme, distribuído pela A24, é uma comédia sombria com cara de pesadelo doméstico. Mary Bronstein filma o caos com precisão: as câmeras próximas, os closes sufocantes, os enquadramentos que cortam o ar. A ausência visual da filha, que só aparece de corpo fragmentado, em pés, mãos e orelhas, é um gesto brilhante. A criança existe, mas o foco está na mãe, e isso muda tudo. Se víssemos a menina por completo, talvez esquecêssemos de olhar para Linda, e é justamente sobre isso que o filme fala: sobre a mulher que desaparece por trás da função de ser mãe.

“Isso é típico dela.”

Rose Byrne está monumental. Vencedora do Urso de Prata de Melhor Atriz em Berlim, ela equilibra exaustão, desespero e ironia com uma entrega que parece saída de um transe. Em cada expressão dela há culpa e resistência, vergonha e amor. Byrne não interpreta a “boa mãe”,  ela vive a mulher real, que quer amar, mas também quer fugir. Que ama o silêncio tanto quanto teme a solidão. O roteiro de Bronstein, ao mesmo tempo cruel e engraçado, tem um humor que nasce do absurdo da rotina. “Se eu tivesse pernas, eu te chutaria” não é apenas um título provocativo — é um grito abafado de todas as mulheres que tentam sustentar uma casa, um trabalho, uma criança e a própria sanidade.

“Só quero que alguém me diga o que fazer.”

A diretora brinca com os gêneros: há drama, há comédia, há um leve tom de thriller psicológico. E em meio a tudo isso, surge o retrato cru da maternidade contemporânea; uma maternidade atravessada por culpa, vergonha e exaustão. A mãe perfeita é uma ficção tão perigosa quanto o teto que ameaça cair. O filme faz uma pergunta silenciosa: será que todas nasceram para ser mãe? E uma afirmação ainda mais incômoda: ser mulher já é, por si só, uma forma de resistência. No fim, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria deixa uma sensação que fica no corpo. É impossível sair igual. Porque depois de acompanhar Linda, você nunca mais olha para a sua mãe — nem para si mesma — da mesma maneira.

Você encontra Se Eu Tivesse Pernas, Eu te Chutaria no Festival do Rio .
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Ruas da Glória: O Amor à beira do abismo

Desde Tá e Fala Comigo, Felipe Sholl vem lapidando um olhar próprio sobre o desejo e o afeto. Em Ruas da Glória, essa crescente se confirma, Sholl parece mais solto, mais corajoso, e confortável para filmar o que muita gente ainda evita: o corpo, o tabu, o vazio. É um filme que respira o caos do Rio à noite, entre o suor, a luz e a falta dela.

Gabriel (Caio Macedo) chega à cidade depois da morte da avó, tentando encontrar vida onde antes só havia rotina. Professor de literatura, ele se torna observador e participante do que se mostra curioso: os homens que vendem prazer e sobrevivem do desejo alheio. Até conhecer Adriano (Alejandro Claveaux), um garoto de programa uruguaio que se torna seu ponto de fuga, e de queda. O que nasce como curiosidade vira dependência; o amor, aqui, é experiência de risco.

Felipe Sholl filma a cidade como extensão emocional dos personagens. As ruas da Glória e da Cinelândia não são apenas cenários, são estados de espírito. Há sempre algo pulsando; uma sirene, uma música de festa, um corpo que passa. O uso da câmera na mão e da lente anamórfica aproxima, comprime, e cria um sentimento de urgência. A exceção é a cena do espelho, o ponto de virada, quando a lente se fecha e o mundo de Gabriel também.

A relação entre Gabriel e Adriano é intensa e inquieta, feita de presença e ausência. Caio Macedo entrega uma atuação delicada, construída no olhar, na hesitação, na entrega contida, quase de uma inocência. Alejandro Claveaux equilibra vulnerabilidade e mistério, evitando a caricatura do “salvador” ou do “perdido”. A química entre os dois é crua, imprevisível, quase perigosa para não dizer tóxica.

Com trilha que vai de Letrux ao silêncio, o filme se move entre o documental e o delírio. O trabalho sexual, o luto e o vício aparecem não como choque, mas como consequência de um corpo que quer sentir e de um afeto que, às vezes, machuca mais do que cura.

Ruas da Glória é um retrato sobre o amor e seus desastres. Sobre a solidão que nem o corpo do outro resolve. Sobre a cidade que continua viva enquanto a gente desaba por dentro. Felipe Sholl filma com coragem e intimidade, transformando o caos noturno do Rio num espelho daquilo que ainda tentamos entender em nós mesmos.

Você encontra Ruas da Glória no Festival do Rio .
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Perrengue Fashion: Quando o riso encontra o Recomeço

Há algo de muito especial em ver uma comédia brasileira ocupar o espaço de destaque em um festival. Perrengue Fashion, dirigido por Flávia Lacerda e protagonizado por Ingrid Guimarães, representa esse marco; não apenas por abrir espaço para o humor, mas por mostrar que a comédia também pode provocar reflexão, revisitar afetos e nos confrontar.

Paula Pratta (Guimarães) é uma influenciadora de moda que vive num universo de filtros, campanhas e hashtags. Quando o filho (Filipe Bragança) abandona tudo para se dedicar a um espaço de permacultura na Amazônia, ela se vê obrigada a atravessar a floresta e, com isso, a si mesma. A jornada, que começa como uma busca desesperada pelo filho para participar de uma campanha publicitária fashion, transforma-se numa travessia sobre o que realmente importa.

Flávia Lacerda conduz a narrativa com leveza, sem perder de vista a humanidade dos personagens. Ingrid Guimarães, já reconhecida por sua força cômica, entrega aqui uma atuação madura, divertida, mas também sensível. Há um brilho de vulnerabilidade em Paula: a mulher que precisou ser tudo sozinha, que venceu barreiras sociais, e que agora tenta controlar o futuro do filho como forma de garantir a própria segurança emocional. É nesse controle que mora o drama silencioso da personagem e a comédia surge justamente no atrito entre a fantasia do mundo perfeito e o colapso inevitável da vida real.

O roteiro, assinado por Ingrid, Edu Araújo, Célio Porto e Marcelo Saback, encontra equilíbrio entre humor e crítica. Os diálogos permitem que o riso se converta em afeto. Há momentos genuinamente engraçados, muito pela química entre Ingrid e Rafa Chalub, que forma com ela uma dupla improvável e irresistível. Chalub, vindo das redes sociais, surpreende pela naturalidade.

Mas Perrengue Fashion vai além da comédia de choque cultural. Ele fala sobre as mães solo que carregam o peso de criar sozinhas, sobre a geração que precisa reaprender a escutar os filhos, e sobre o desconforto de sair da zona de conforto, seja ela o feed do Instagram ou o apartamento de classe média.

No fundo, é um filme sobre recomeço. Sobre quando a floresta, literal e simbólica, obriga a gente a tirar os saltos, pisar na terra e lembrar quem éramos antes de tudo virar performance, antes de tudo ser para o outro, quando era por nós.

Ingrid Guimarães prova, mais uma vez, que sabe rir de si mesma e transformar esse riso em algo maior: empatia. Perrengue Fashion faz rir, mas também faz pensar.

Você encontra Perrengue Fashion nos cinemas a partir do dia 9 de Outubro.

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In-I in Motion — Corpo que Dança o Próprio Medo

Ontem assisti In-I in Motion no Festival do Rio. Dirigido e estrelado por Juliette Binoche, o filme parte de um gesto de coragem: o de se colocar vulnerável diante da arte e da própria limitação.

Em 2007, Binoche decidiu se afastar do cinema para criar um espetáculo de dança com o coreógrafo Akram Khan. O acordo entre os dois era simples e simbólico; ela o ajudaria a se tornar um ator melhor, e ele a ensinaria a dançar. Dessa troca nasceu o espetáculo In-I, e agora o filme, que mistura bastidores, ensaios e performance em um só movimento.

É curioso observar uma atriz do tamanho de Binoche se despindo da segurança da atuação para explorar um novo corpo. O documentário registra o processo cru: ensaios longos, tropeços, cansaço, frustrações e momentos de descoberta. Há algo de profundamente humano em vê-la aprender a respirar de outro jeito, cair e levantar, buscar o ritmo com o corpo inteiro. A dança que nasce do erro é, talvez, a mais verdadeira.

Em muitos momentos, In-I in Motion se torna um espelho da relação entre Binoche e Khan,  dois artistas tentando acessar o que há de mais autêntico no outro. Entre o atrito e a parceria, o filme encontra sua pulsação. É arte lapidando arte.

Durante o festival, Binoche comentou que não gostou completamente do resultado final e que o espetáculo completo ao fim foi uma decisão da distribuidora. Ela trabalha em um novo corte, trinta minutos mais curto. E faz sentido: há um respiro que o filme ainda busca, uma leveza que cabe melhor em sua proposta.

Mas o que mais me tocou foi o que ela disse após a sessão: que todos temos um artista dentro de nós, e que o desafio é vencer o medo de acessá-lo. Em In-I in Motion, ela faz exatamente isso,  enfrenta o medo com o corpo, sem máscaras, sem controle, sem se esconder.

Como espectadora, admirei a coragem. Como artista, senti vontade de me mover também,  de errar mais, tentar mais, existir mais. In-I in Motion não é apenas um filme sobre dança; é sobre libertar o corpo da exigência de perfeição.

No fim, o essencial permanece: o instante em que o medo se transforma em movimento.

Você encontra In i In Motion no Festival do Rio.

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Alpha — Corpo como Contágio e Salvação

Alguns filmes não terminam quando a tela escurece, eles permanecem dentro da gente, como uma febre. Alpha, novo longa de Julia Ducournau, é exatamente isso: um filme que arde, coça e não cicatriza.

Escrito e dirigido pela cineasta que redefiniu o horror corporal com Raw e Titane, Alpha é, antes de tudo, um mergulho na carne; mas uma carne que apodrece e se desfaz em pó, que não grita, mas silencia. Um drama familiar que começa íntimo e termina apocalíptico, questionando o que acontece quando o amor e a infecção se tornam indistintos.

Assisti Alpha no Festival do Rio  e confesso: minhas expectativas eram enormes. Julia Ducournau é minha diretora preferida. Há algum tempo, quando me perguntaram quem eu mais admirava no cinema, não soube responder. Só soube depois de ver Raw e Titane. Ali entendi que o cinema dela me atravessa de um jeito raro: é físico, feminino e selvagem. Ela filma o corpo como quem filma a alma.

E Alpha reafirma isso. Já na cena inicial, uma menina desenha nas feridas do homem que cuida dela, ligando cicatrizes como quem tenta reconstruir uma constelação perdida. É belo e incômodo, quase impossível desviar o olhar. A câmera de Ducournau tem essa delicadeza brutal: a de nos fazer olhar mesmo quando queremos desviar.

“Não é um bom momento para sangrar.”

Quando o filme corta para o tio de Alpha se drogando, vi ali um eco de Réquiem para um Sonho. A agulha, a pele, o desespero. Mas o que mais me marcou foi a cena seguinte: Alpha, já adolescente, bêbada em uma festa, deixando que alguém tatue um “A” torto em seu braço. Naquele momento, me vi lembrando do que assistia aos treze, como Eu, Christiane F. e Skins. Aquela mistura de descoberta e autodestruição, o desejo de pertencer e o medo de se perder. Julia Ducournau entende esse limiar como poucos, o instante em que o corpo quer ser livre e acaba virando prisão.

O filme é uma grande odisseia pandêmica. A infecção aqui é tanto literal quanto simbólica: corpos que se tornam mármore antes de se dissolver em pó branco. O medo se espalha, e a sociedade se desintegra — um reflexo de tudo o que vivemos, do isolamento, da paranoia, da falta de toque. Há um momento em que a mãe de Alpha, interpretada de forma arrebatadora por Golshifteh Farahani, limpa o vômito da filha e descobre o corte fresco da tatuagem, e eu senti o nó na garganta de quem ama e teme ao mesmo tempo.

Tahar Rahim está esplêndido como o tio, um corpo frágil, doente e cheio de culpa. A relação entre os três: mãe, filha e irmão,  é o coração pulsante do filme. É onde Ducournau transforma o horror em ternura, a doença em vínculo.

E como sempre, a trilha sonora é um personagem à parte. Quando Portishead começa a tocar logo no início, senti aquele arrepio que só o cinema dela provoca,  como se cada batida de som fosse uma gota de sangue caindo em câmera lenta.

“Deve ser um inferno ser criança hoje em dia.”

Sim, o último ato se estende demais, com saltos temporais um pouco confusos. Mas mesmo ali, há uma coerência emocional: o caos é parte da experiência. Alpha é um filme sobre o colapso,  do corpo, da família, do mundo.

Saí da sessão com a sensação de estar coberta pelo mesmo pó branco que domina a tela. Como espectadora, senti o incômodo físico; como roteirista, admirei a coragem. E como mulher, me reconheci naquele gesto final,  o de tentar religar a carne rasgada de alguém.

No fim, Alpha não é sobre vírus. É sobre o contágio que é amar alguém até o limite da dor. E talvez seja por isso que eu continue pensando nele — e em Julia Ducournau — muito depois que a luz do cinema se apagou.

Você encontra Alpha no Festival do Rio.

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Rabia – As Esposas do Estado Islâmico (2024)

Assisti Rabia na sessão de abertura da 2ª edição do Festival de Filmes Incríveis e saí da sala em silêncio. Com aquele silêncio pesado, cheio de pensamento. É um filme que não grita. Ele murmura. Ele aperta. Ele marca.

Inspirado na história real da marroquina Faitha Mejjati (a temida Oum Adam), o longa de Mareike Engelhardt, em sua estreia como diretora, mergulha num dos aspectos menos explorados (e mais assustadores) do regime do Daesh: as madafas, casas onde jovens mulheres ocidentais, convertidas e doutrinadas, aguardavam para se tornarem esposas dos combatentes.

Acompanhamos Jessica, uma jovem francesa, que troca a promessa de liberdade por uma cela invisível em Raqqa. Inicialmente deslumbrada pela promessa de pertencimento e fé, ela logo se vê nas mãos de Madame (vivida por Lubna Azabal), uma figura carismática, fanática e cruel. Uma verdadeira regente do silêncio, da manipulação e do apagamento feminino.

O filme acerta ao fugir do sensacionalismo: não mostra a violência diretamente, mas ela está ali; nos ruídos abafados, nas portas trancadas, nos olhares desviados. A encenação usa o fora de campo como arma estética e emocional. O som, o silêncio, as marcas no corpo e na alma falam mais alto que qualquer diálogo.    Mereike Engelhardt entende o poder do não dito, e é nesse não dito que o horror cresce.

A fotografia de Agnès Godard é outro destaque: claustrofóbica quando precisa ser, etérea em alguns momentos, ela acompanha visualmente a transformação (e deformação) de Jessica: de uma jovem idealista a alguém dilacerada e moldada pela dor. A trilha sonora de David Chalmin, tênue e incômoda, reforça essa espiral sombria.

Mas talvez o maior acerto de Rabia seja o roteiro. Ele não explica, não paternaliza, não julga. Ele observa. Ele denuncia. E nos convida a refletir. Mulheres que buscam uma nova vida, uma identidade, acabam encontrando o contrário disso: submissão, vigilância, apagamento.

E há uma reviravolta cruel: o ciclo da violência se perpetua. Jessica se torna Oum Rabia (“raiva”), e a vítima começa a reproduzir aquilo que sofreu. A cena da virada é seca, sem alarde e por isso mesmo tão devastadora.

Rabia é, sim, duro. Mas necessário. Um retrato quase inédito dessas casas-prisões comandadas por mulheres, onde outras mulheres eram treinadas, moldadas e, muitas vezes, destruídas. E é também um lembrete: ainda hoje, muitas dessas meninas continuam presas no campo de refugiados de Al-Hol, vivendo o rescaldo do extremismo.

No final, o filme não oferece respostas fáceis, mas uma fagulha de esperança. E a pergunta que fica, ecoando depois dos créditos, é: quantas outras Jessicas ainda estão por aí, acreditando que estão sendo salvas, quando na verdade estão sendo silenciadas?

Você encontra Rabia- As Esposas do Estado Islâmico nos Cinemas a partir do dia 21 de Agosto .

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Premonição 6: Laços de Sangue — A Morte Nunca Esquece

A franquia Premonição sempre teve um pacto com o espectador: provocar calafrios existenciais por meio de acidentes improváveis e mortes inevitáveis. Quem assistiu aos filmes anteriores sabe do que estou falando — é impossível não acelerar o passo ao ver um caminhão de toras pela frente ou repensar a ideia de entrar numa cama de bronzeamento. Com Laços de Sangue, sexto capítulo da saga, esse pacto é renovado com sangue, medo e um inesperado toque de emoção familiar.

Dirigido por Zach Lipovsky e Adam B. Stein, e com roteiro assinado por Guy Busick (Pânico 5 e 6), Lori Evans Taylor e Jon Watts, o novo filme surpreende ao deixar de lado os grupos de amigos e apostar em uma narrativa centrada numa família assombrada por uma maldição transgeracional. A jovem Stefanie (Kaitlyn Santa Juana) começa a ter visões brutais envolvendo a morte dos seus entes queridos. Buscando respostas, ela retorna às suas origens e encontra na avó Iris (vivida por Gabrielle Rose e por Brec Bassinger, em flashbacks) o fio da meada de um trauma que remonta aos anos 60 — uma era em que o destino também tentou, em vão, ser burlado.

O que eleva Laços de Sangue entre os melhores da franquia em relação aos últimos é justamente o roteiro: coeso, bem ritmado e emocionalmente ancorado. As mortes aqui voltam a ter um propósito. Não são apenas acidentes mirabolantes — são presságios cuidadosamente arquitetados para mexer com o imaginário do espectador. Você sai da sala de cinema pensando duas vezes antes de fazer um churrasco ou até ir à um hospital. A sensação de vulnerabilidade retorna com força.

A trilha sonora é outro trunfo do filme. Ela age como prenúncio, criando uma tensão que pulsa como um batimento cardíaco prestes a parar. Já a direção, apesar de competente na condução dos sustos, peca por um excesso de artificialidade em suas sequências iniciais — em especial na cena da torre, onde a computação gráfica compromete a imersão.

Mas Laços de Sangue não é só sobre sustos. É também sobre legado. Ao trazer de volta Tony Todd como o icônico JB — agora com uma história de origem revelada —, o longa amarra pontas soltas e oferece aos fãs da franquia uma recompensa tardia: a compreensão de que a Morte, neste universo, é uma entidade impessoal, mas vigilante. JB é o elo entre gerações de sobreviventes e também um lembrete de que ninguém escapa para sempre.

Ao optar por um elo de sangue como núcleo emocional, Premonição 6 revigora sua mitologia e reafirma sua relevância. É um retorno digno, sangrento e, acima de tudo, eficaz. Porque o que realmente marca um bom filme Premonição não é apenas como se morre — mas o quanto essas mortes nos fazem temer pela nossa própria vida e pensa-las no cotidiano.

Você encontra Premonição 6- Laços de Sangue nos Cinemas a partir do próxima quinta-feira (15 de Maio).

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Anora

Desde que Sean Baker surgiu no cenário cinematográfico com obras marcantes como Tangerina (2015) e Projeto Florida (2017), seu nome tem sido sinônimo de autenticidade e experimentação no cinema independente. Com Anora, Baker não só consolida seu status como um dos criadores mais ousados de sua geração, mas também abre caminho para a temporada de prêmios, posicionando seu novo filme como um forte concorrente ao Oscar de 2025 – especialmente após ser coroado com a Palma de Ouro em Cannes 2024.

Baker, que assina tanto o roteiro quanto a direção, prova novamente ser um exímio observador da humanidade, com um talento único para explorar e humanizar personagens marginalizados. Sob o pretexto de uma comédia romântica, ele constrói em Anora um filme que transborda crítica social, nuances emocionais e uma sensibilidade estética que é ao mesmo tempo crua e deslumbrante. O resultado é uma história que desconstrói o conto de fadas empacotado em Hollywood e entrega algo infinitamente mais real, mais doloroso e mais memorável.

O roteiro é um dos pilares mais fortes do filme. Sean Baker consegue equilibrar com diálogos naturalistas, momentos de leveza cômica e reflexões sobre poder, classe social e trabalho sexual. A protagonista Ani ou Anora, como é chamada ao longo do filme ganha profundidade e camadas como raramente se vê em personagens femininas. Interpretada por Mikey Madison em sua performance mais impactante até agora, Ani é uma protagonista complexa em todos os sentidos. Vivendo como trabalhadora do sexo no Brooklyn, Ani encara os desafios diários de sua rotina com uma mistura de pragmatismo e cuidado: fazendo piadas, comendo no meio do expediente e conversando com amigas, enquanto navega por um ambiente cercado de preconceitos.

A genialidade do roteiro está em construir sua trajetória sem didatismos ou paternalismos. Ani, com sua personalidade forte e vulnerável, não é apresentada como vítima absoluta nem como heroína, mas como uma mulher cuja humanidade é mostrada em cada cena.  Madison entrega uma interpretação recheada de nuances, mesclando força e ingenuidade. É impossível não se conectar com sua Ani, uma personagem cujas escolhas imprudentes têm consequências trágicas, mas que nunca perde sua dignidade. A relação da personagem com Ivan (Mark Eydelshteyn), o filho de um oligarca russo, revela a disparidade crua entre aqueles que sofrem com a desigualdade social e aqueles que permanecem acima de quaisquer consequências.

Sean Baker não se contenta em contar uma história; ele transforma Anora em uma experiência cinematográfica quase tátil. A direção é precisa, criativa e permeada por uma energia que captura tanto o caos quanto a esperança de sua narrativa. Baker sabe perfeitamente quando desacelerar para explorar os momentos mais íntimos – entre Ani e suas amigas ou mesmo suas interações mais vulneráveis com Ivan – e quando escalar a trama para o puro absurdo.

No segundo ato, quando a família de Ivan entra na história e uma comitiva de capangas chega ao Brooklyn para anular o casamento do casal, Baker eleva a comédia ao limite do tragicômico. O caos instaurado nas situações – tragicômicas e absurdas – que se seguem é um triunfo criativo, ao mesmo tempo em que serve como veículo para uma crítica contundente às dinâmicas de poder. Baker expõe o ridículo dessas situações, mas nunca de forma gratuita, usando o exagero como forma de intensificar o impacto emocional e crítico do longa.

A fotografia  é, simplesmente, espetacular. O filme transita entre momentos de intensa intimidade e sequências grandiosas embaladas pela vibrante estética neon do Brooklyn. A fotografia captura a pulsação da cidade: é ao mesmo tempo elétrica e sufocante, delicada e brutal.  Sean Baker sabe como usar a paleta de cores saturada para amplificar a viagem emocional de sua protagonista – seja nos tons quentes que iluminam uma noitada de sonhos com Ivan ou os tons frios e desolados que refletem as duras investidas do mundo ao redor de Ani.

A trilha sonora também brilha como um elemento-chave. Sua força vai além de complementar a narrativa; ela é uma extensão dos eventos do filme, capaz de carregar peso dramático em cenas silenciosas e intensificar o ritmo das sequências mais caóticas. A escolha precisa de cada faixa, como TATU na trilha sonora é um golpe de mestre: ao mesmo tempo nostálgica e provocativa, sua presença musical ressoa de forma poderosa, contribuindo para um ambiente que mistura o clássico e o moderno, o leve e o pesado.

Embora Anora seja vendido como uma comédia romântica – e, em determinados momentos, flerte com esse tom –, é na desconstrução do gênero que a obra realmente brilha. Baker utiliza as convenções do conto de fadas moderno para expor a disparidade de classes e as injustiças intrínsecas entre aqueles que têm poder e aqueles que vivem à margem.

Ivan, o filho de uma família rica que age com desdém sobre suas ações, é o completo oposto de Ani, que precisa lidar com todas as consequências de suas escolhas. Enquanto ele retorna para a Rússia sem nenhuma marca de sua experiência, ela é deixada para recolher os pedaços da vida que tentou construir. O filme não dá respostas fáceis nem oferece conforto. O final é desconfortável, porém autêntico, refletindo de forma honesta as desigualdades de um mundo onde poder e privilégio ditam as regras.

Anora não é apenas um grande filme; é uma obra que reafirma o talento de Sean Baker. Em um ano competitivo, é difícil imaginar que o filme não continue ganhando atenção na temporada de prêmios. É um filme que transcende os rótulos, ao mesmo tempo acessível e desafiador, comédia e drama, deslumbrante e desconfortável.

Você encontra Anora a partir do dia 23 de Janeiro nos Cinemas.

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Conclave

Conclave, a mais recente adaptação do renomado livro de Robert Harris, sob a direção de Edward Berger, e que teve passagem no Festival do Rio de 2024 como uma das grandes surpresas e logo se destacou como um forte concorrente em premiações, incluindo o Globo de Ouro. Com um elenco de peso liderado por Ralph Fiennes e Isabella Rossellini, o filme nos transporta para os segredos e intrigas que permeiam o processo de escolha de um novo papa, um evento que ocorre nas sombras da Capela Sistina, entre cédulas queimadas e fumaças brancas.

“O trono da Santa Fe está vago”

A trama se desenrola após a morte inesperada de um amado papa, quando o Cardeal Thomas Lawrence (Fiennes) é incumbido da imensa responsabilidade de conduzir o conclave, uma tradição de isolamento e sigilo que remonta a oito séculos. Em um ambiente repleto de pressões internas, Lawrence rapidamente percebe que não está apenas lidando com a escolha de um novo líder espiritual, mas se vê imerso em um labirinto de conspirações e segredos que podem abalar os alicerces da Igreja Católica.

A direção de Edward Berger captura a tensão palpável nos corredores do Vaticano, do silêncio reverente da Capela Sistina aos sussurros estratégicos de líderes ambiciosos. O roteiro de Peter Straughan equilibra diálogos instigantes com momentos de reflexão sobre o papel da Igreja na contemporaneidade.

“40 anos sem papa italiano”

Um dos pontos fortes de “Conclave” é, sem dúvida, sua direção de arte e fotografia. A atmosfera única do Vaticano é retratada com riqueza de detalhes, criando um cenário que não apenas serve como pano de fundo, mas como um personagem à parte que influencia o desenrolar da história. Por outro lado, o filme também provoca controvérsias. A reação do bispo norte-americano Robert Barron, que pediu boicote ao longa, ilustra o impacto que Conclave pode ter sobre o público católico. Sua crítica, que destaca uma visão negativa da hierarquia da Igreja, aponta para um nervo exposto: as dinâmicas internas da instituição. No entanto, é exatamente essa divisão interna entre progressistas e tradicionalistas, que o filme aborda com ousadia, que faz da narrativa um tema relevante e pertinente.

Conclave não se furta a discutir temas contemporâneos como o papel das mulheres na Igreja e as mudanças sociais que estão em jogo. Ao colocar seus personagens em situações que desafiam a ordem tradicional, o filme convida o espectador a refletir sobre a necessidade de adaptação e transformação em uma instituição histórica. Embora o filme abrace uma perspectiva crítica, ele também é um convite ao diálogo sobre estes temas, uma jornada que esmiúça o ethos da Igreja Católica contemporânea. As atuações de Fiennes e Rossellini são potentes, trazendo profundidade e complexidade a personagens que navegam neste mar de ambição e fé.

Em suma, Conclave é uma obra cinematográfica audaciosa e visualmente impressionante que, além de contar uma história intrigante, provoca reflexões sobre questões contemporâneas e a essência do poder.

Você encontra Conclave a partir do dia 23 de Janeiro nos Cinemas.

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