Krishnamurti: A Revolução do Silêncio é um daqueles filmes que não se assiste; se vivencia. Dirigido por Françoise Ferraton, o documentário sobre o filósofo indiano Jiddu Krishnamurti convida o espectador a desacelerar, observar e, acima de tudo, silenciar. Saí do cinema em suspenso. O filme ecoa mais do que explica, e talvez esse seja o maior mérito: ele não busca converter, mas despertar.
A diretora utiliza imagens de arquivo, entrevistas e leituras de cadernos que vão de 1961 a 1984, ano do último diário do pensador. A estrutura é simples, quase transparente, porque o centro de tudo é a voz de Krishnamurti; uma voz calma, lúcida, que parece atravessar o tempo e sussurrar para o presente. Ele fala sobre o poder da observação, sobre como a consciência contém em si o sofrimento humano. Não apenas o sofrimento pessoal, mas o de toda a humanidade.
O filme começa com a fluidez de um rio. E é justamente nesse ritmo que Ferraton conduz a narrativa, um fluxo de imagens, pessoas, natureza. Aos poucos, a água dá lugar à terra, e a contemplação se torna espelho. Krishnamurti dizia que “ser livre é observar sem julgamento”, e o documentário parece filmar exatamente isso: o olhar que se liberta da pressa, da opinião, da necessidade de ter razão.
Mas é impossível sair ileso. A verdade, aqui, chega a ser sufocante. As imagens de imigrantes exaustos, famílias atravessando fronteiras em busca de abrigo, pessoas sem terra, sem casa, sem país, todas fugindo da guerra e da fome, dão corpo ao sofrimento coletivo de que Krishnamurti fala. É o retrato visível da consciência humana adoecida. O silêncio proposto por ele não é fuga, é enfrentamento. É o convite a enxergar o caos humano sem reagir com mais ruído, sem tentar curar o mundo antes de olhar para o que há dentro de nós.
O documentário percorre sua trajetória, da juventude na escola teosófica à vida na Inglaterra e depois na Califórnia, onde viveu seus últimos anos. Mas mais do que biografia, A Revolução do Silêncio é um estado de espírito. O filme não tenta explicar Krishnamurti; tenta sentir com ele.
“Você ouve a palavra ou o conteúdo da palavras?”
Entre as reflexões, uma frase permanece: “Compaixão é liberdade. E compaixão significa o fim do sofrimento.” É simples e devastador. Ser livre, afinal, é cessar a busca. É aceitar que talvez a verdadeira revolução seja interior, invisível e silenciosa.
Krishnamurti: A Revolução do Silêncio é um lembrete raro de que pensar nem sempre é entender; às vezes é só respirar. E nesse respiro, algo muda.
Você encontra Krishnamurti no Festival do Rio .
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Até o próximo texto.
Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria é um daqueles filmes que todo mundo precisa ver. Saí impactada da sessão no Festival do Rio e demorei dias para digerir tudo o que Mary Bronstein constrói aqui. É um filme que te atravessa; não por gritar, mas por expor com precisão e ironia o que significa ser mulher (e mãe) em colapso.
Mary Bronstein não filma apenas uma mulher à beira de um colapso, ela filma o colapso em si. Em Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria, Rose Byrne é Linda, uma mãe, psicóloga e sobrevivente de um cotidiano que parece conspirar contra ela. O teto literalmente desaba, e a metáfora não poderia ser mais óbvia e mais dolorosamente real. Depois que a água invade o apartamento, Linda é obrigada a se mudar para um motel com a filha doente. O marido está sempre ausente, o terapeuta parece mais interessado em provocá-la do que em ajudá-la, e o mundo inteiro parece lhe exigir equilíbrio quando tudo o que ela precisa é de cinco minutos de silêncio e solitude. A vida desmorona em câmera lenta e, de alguma forma, ainda assim ela precisa dar conta de tudo.
“Deve ser legal fazer as coisas para se divertir.”
O filme, distribuído pela A24, é uma comédia sombria com cara de pesadelo doméstico. Mary Bronstein filma o caos com precisão: as câmeras próximas, os closes sufocantes, os enquadramentos que cortam o ar. A ausência visual da filha, que só aparece de corpo fragmentado, em pés, mãos e orelhas, é um gesto brilhante. A criança existe, mas o foco está na mãe, e isso muda tudo. Se víssemos a menina por completo, talvez esquecêssemos de olhar para Linda, e é justamente sobre isso que o filme fala: sobre a mulher que desaparece por trás da função de ser mãe.
“Isso é típico dela.”
Rose Byrne está monumental. Vencedora do Urso de Prata de Melhor Atriz em Berlim, ela equilibra exaustão, desespero e ironia com uma entrega que parece saída de um transe. Em cada expressão dela há culpa e resistência, vergonha e amor. Byrne não interpreta a “boa mãe”, ela vive a mulher real, que quer amar, mas também quer fugir. Que ama o silêncio tanto quanto teme a solidão. O roteiro de Bronstein, ao mesmo tempo cruel e engraçado, tem um humor que nasce do absurdo da rotina. “Se eu tivesse pernas, eu te chutaria” não é apenas um título provocativo — é um grito abafado de todas as mulheres que tentam sustentar uma casa, um trabalho, uma criança e a própria sanidade.
“Só quero que alguém me diga o que fazer.”
A diretora brinca com os gêneros: há drama, há comédia, há um leve tom de thriller psicológico. E em meio a tudo isso, surge o retrato cru da maternidade contemporânea; uma maternidade atravessada por culpa, vergonha e exaustão. A mãe perfeita é uma ficção tão perigosa quanto o teto que ameaça cair. O filme faz uma pergunta silenciosa: será que todas nasceram para ser mãe? E uma afirmação ainda mais incômoda: ser mulher já é, por si só, uma forma de resistência. No fim, Se Eu Tivesse Pernas, Eu Te Chutaria deixa uma sensação que fica no corpo. É impossível sair igual. Porque depois de acompanhar Linda, você nunca mais olha para a sua mãe — nem para si mesma — da mesma maneira.
Você encontra Se Eu Tivesse Pernas, Eu te Chutaria no Festival do Rio .
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Até o próximo texto.
Em Elisa – O Véu da Culpa, Leonardo Di Costanzo mergulha nas zonas mais turvas da mente humana, aquele lugar onde culpa e negação se confundem com sobrevivência. Inspirado em uma história real, o filme é uma coprodução entre Itália e Suíça e acompanha Elisa, uma mulher de 35 anos, presa há mais de uma década por um crime brutal: matar e queimar o corpo da própria irmã. Ela diz não se lembrar de nada. E talvez essa seja a única verdade possível.
O diretor constrói um drama psicológico que caminha lentamente, às vezes até demais, mas com propósito. Nada é gratuito. O silêncio aqui fala tanto quanto a fala, e o olhar de Elisa carrega mais perguntas do que respostas. Ao aceitar participar da pesquisa do renomado criminologista Alaoui, especialista em crimes familiares, ela se vê obrigada a revisitar o que mais teme: a própria memória.
Aos poucos, fragmentos do passado emergem. Uma infância marcada por rejeição; uma mãe que dizia não tê-la querido, um ambiente aparentemente estruturado, mas emocionalmente devastado. Elisa cresceu sem afeto, reprimindo o que sentia até que a raiva se confundiu com medo. E quando o medo transbordou, o crime aconteceu. Ela apenas não consegue encarar o reflexo do que foi capaz de fazer.
O filme propõe uma reflexão desconfortável: o que é, afinal, a culpa? Um fardo moral, um instinto de autoproteção, ou apenas o nome que damos àquilo que não sabemos como processar? Costanzo articula tudo isso através das sessões com Alaoui, que enxerga no criminoso não o monstro, mas o humano imperfeito, falho e ainda assim capaz de redenção.
Há um contraste forte entre os dois exemplos de perdão apresentados: o pai que visita a filha duas vezes por semana no centro penitenciário, e a mãe de outro caso, que perdeu o filho assassinado e permanece prisioneira da própria dor. Um perdoa o imperdoável; o outro não consegue sobreviver ao ódio. Entre eles, o espectador é colocado diante do espelho, e o filme pergunta: você perdoaria um criminoso?
A fotografia fria, quase clínica, reforça essa distância entre o que é lembrado e o que é reprimido. Elisa – O Véu da Culpa é um filme sobre memória e negação, mas também sobre humanidade, sobre o que resta quando o castigo já foi cumprido, mas o perdão ainda não chegou.
Costanzo entende que olhar para o passado é o verdadeiro cárcere. E talvez o perdão, dos outros e de si mesma, seja o único caminho possível para sair de lá.
Você encontra Elisa- O Veu da Culpa no Festival do Rio .
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Assisti Rabia na sessão de abertura da 2ª edição do Festival de Filmes Incríveis e saí da sala em silêncio. Com aquele silêncio pesado, cheio de pensamento. É um filme que não grita. Ele murmura. Ele aperta. Ele marca.
Inspirado na história real da marroquina Faitha Mejjati (a temida Oum Adam), o longa de Mareike Engelhardt, em sua estreia como diretora, mergulha num dos aspectos menos explorados (e mais assustadores) do regime do Daesh: as madafas, casas onde jovens mulheres ocidentais, convertidas e doutrinadas, aguardavam para se tornarem esposas dos combatentes.
Acompanhamos Jessica, uma jovem francesa, que troca a promessa de liberdade por uma cela invisível em Raqqa. Inicialmente deslumbrada pela promessa de pertencimento e fé, ela logo se vê nas mãos de Madame (vivida por Lubna Azabal), uma figura carismática, fanática e cruel. Uma verdadeira regente do silêncio, da manipulação e do apagamento feminino.
O filme acerta ao fugir do sensacionalismo: não mostra a violência diretamente, mas ela está ali; nos ruídos abafados, nas portas trancadas, nos olhares desviados. A encenação usa o fora de campo como arma estética e emocional. O som, o silêncio, as marcas no corpo e na alma falam mais alto que qualquer diálogo. Mereike Engelhardt entende o poder do não dito, e é nesse não dito que o horror cresce.
A fotografia de Agnès Godard é outro destaque: claustrofóbica quando precisa ser, etérea em alguns momentos, ela acompanha visualmente a transformação (e deformação) de Jessica: de uma jovem idealista a alguém dilacerada e moldada pela dor. A trilha sonora de David Chalmin, tênue e incômoda, reforça essa espiral sombria.
Mas talvez o maior acerto de Rabia seja o roteiro. Ele não explica, não paternaliza, não julga. Ele observa. Ele denuncia. E nos convida a refletir. Mulheres que buscam uma nova vida, uma identidade, acabam encontrando o contrário disso: submissão, vigilância, apagamento.
E há uma reviravolta cruel: o ciclo da violência se perpetua. Jessica se torna Oum Rabia (“raiva”), e a vítima começa a reproduzir aquilo que sofreu. A cena da virada é seca, sem alarde e por isso mesmo tão devastadora.
Rabia é, sim, duro. Mas necessário. Um retrato quase inédito dessas casas-prisões comandadas por mulheres, onde outras mulheres eram treinadas, moldadas e, muitas vezes, destruídas. E é também um lembrete: ainda hoje, muitas dessas meninas continuam presas no campo de refugiados de Al-Hol, vivendo o rescaldo do extremismo.
No final, o filme não oferece respostas fáceis, mas uma fagulha de esperança. E a pergunta que fica, ecoando depois dos créditos, é: quantas outras Jessicas ainda estão por aí, acreditando que estão sendo salvas, quando na verdade estão sendo silenciadas?
Você encontra Rabia- As Esposas do Estado Islâmico nos Cinemas a partir do dia 21 de Agosto .
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A franquia Premonição sempre teve um pacto com o espectador: provocar calafrios existenciais por meio de acidentes improváveis e mortes inevitáveis. Quem assistiu aos filmes anteriores sabe do que estou falando — é impossível não acelerar o passo ao ver um caminhão de toras pela frente ou repensar a ideia de entrar numa cama de bronzeamento. Com Laços de Sangue, sexto capítulo da saga, esse pacto é renovado com sangue, medo e um inesperado toque de emoção familiar.
Dirigido por Zach Lipovsky e Adam B. Stein, e com roteiro assinado por Guy Busick (Pânico 5 e 6), Lori Evans Taylor e Jon Watts, o novo filme surpreende ao deixar de lado os grupos de amigos e apostar em uma narrativa centrada numa família assombrada por uma maldição transgeracional. A jovem Stefanie (Kaitlyn Santa Juana) começa a ter visões brutais envolvendo a morte dos seus entes queridos. Buscando respostas, ela retorna às suas origens e encontra na avó Iris (vivida por Gabrielle Rose e por Brec Bassinger, em flashbacks) o fio da meada de um trauma que remonta aos anos 60 — uma era em que o destino também tentou, em vão, ser burlado.
O que eleva Laços de Sangue entre os melhores da franquia em relação aos últimos é justamente o roteiro: coeso, bem ritmado e emocionalmente ancorado. As mortes aqui voltam a ter um propósito. Não são apenas acidentes mirabolantes — são presságios cuidadosamente arquitetados para mexer com o imaginário do espectador. Você sai da sala de cinema pensando duas vezes antes de fazer um churrasco ou até ir à um hospital. A sensação de vulnerabilidade retorna com força.
A trilha sonora é outro trunfo do filme. Ela age como prenúncio, criando uma tensão que pulsa como um batimento cardíaco prestes a parar. Já a direção, apesar de competente na condução dos sustos, peca por um excesso de artificialidade em suas sequências iniciais — em especial na cena da torre, onde a computação gráfica compromete a imersão.
Mas Laços de Sangue não é só sobre sustos. É também sobre legado. Ao trazer de volta Tony Todd como o icônico JB — agora com uma história de origem revelada —, o longa amarra pontas soltas e oferece aos fãs da franquia uma recompensa tardia: a compreensão de que a Morte, neste universo, é uma entidade impessoal, mas vigilante. JB é o elo entre gerações de sobreviventes e também um lembrete de que ninguém escapa para sempre.
Ao optar por um elo de sangue como núcleo emocional, Premonição 6 revigora sua mitologia e reafirma sua relevância. É um retorno digno, sangrento e, acima de tudo, eficaz. Porque o que realmente marca um bom filme Premonição não é apenas como se morre — mas o quanto essas mortes nos fazem temer pela nossa própria vida e pensa-las no cotidiano.
Você encontra Premonição 6- Laços de Sangue nos Cinemas a partir do próxima quinta-feira (15 de Maio).
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Adaptação da peça homônima de Renata Mizrahi, Os Sapos é um filme que transita entre o drama e a comédia com uma naturalidade desconcertante. Sob a direção de Clara Linhart, a narrativa se desenrola em um cenário bucólico que, paradoxalmente, abriga tensões sufocantes e relações marcadas pela toxicidade emocional.
A trama acompanha Paula (Talita Carauta), uma mulher de quase 40 anos que viaja para um reencontro com amigos do colégio, apenas para descobrir que a confraternização foi cancelada. Presa no local até o dia seguinte, ela convive com Marcelo (Pierre Santos) e sua namorada não assumida, Luciana (Karina Ramil), além do casal vizinho, Cláudio (Paulo Hamilton) e Fabiana (Verônica Reis). A presença inesperada de Paula acaba funcionando como um catalisador para expor as frustrações e conflitos que essas relações carregam.
O grande trunfo do filme é seu olhar afiado sobre o amor e suas amarras invisíveis. Aqui, não se trata do romantismo idealizado, mas do amor que aprisiona, que mina a autoestima e que, muitas vezes, se confunde com dependência emocional. Através de diálogos ágeis e uma atmosfera quase teatral, Os Sapos mergulha na fragilidade dos vínculos humanos, sem entregar respostas fáceis.
Talita Carauta é o coração do filme. Conhecida por seus papéis cômicos, a atriz surpreende ao carregar a complexidade de Paula com sutileza e intensidade, dominando cada cena sem precisar de grandes gestos ou falas. Sua presença nos conduz por um enredo que se desenrola permitindo que os espectadores sintam a crescente tensão entre os personagens.
O roteiro de Renata Mizrahi é certeiro ao abordar dinâmicas de poder dentro dos relacionamentos. O casal Cláudio e Fabiana, por exemplo, encarna a caricatura do amor tóxico sustentado por manipulação e insegurança. Já Marcelo e Luciana representam a zona cinzenta dos relacionamentos modernos, onde a falta de compromisso não é liberdade, mas sim um sintoma de algo mais profundo e disfuncional.
Vencedor de prêmios no Festival Internacional de Cinema de João Pessoa e reconhecido em festivais internacionais, Os Sapos prova que um filme não precisa de grandes reviravoltas para ser impactante. Com um elenco afiado e um roteiro que provoca reflexões sobre os padrões emocionais que seguimos (muitas vezes sem perceber), essa tragicomédia se firma como um retrato perspicaz das relações humanas.
Os Sapos já está nos cinemas. Vale a pena conferir e refletir sobre as relações que escolhemos (ou aceitamos) viver.
Você encontra Os Sapos nos maiores Cinemas.
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Desde que Sean Baker surgiu no cenário cinematográfico com obras marcantes como Tangerina (2015) e Projeto Florida (2017), seu nome tem sido sinônimo de autenticidade e experimentação no cinema independente. Com Anora, Baker não só consolida seu status como um dos criadores mais ousados de sua geração, mas também abre caminho para a temporada de prêmios, posicionando seu novo filme como um forte concorrente ao Oscar de 2025 – especialmente após ser coroado com a Palma de Ouro em Cannes 2024.
Baker, que assina tanto o roteiro quanto a direção, prova novamente ser um exímio observador da humanidade, com um talento único para explorar e humanizar personagens marginalizados. Sob o pretexto de uma comédia romântica, ele constrói em Anora um filme que transborda crítica social, nuances emocionais e uma sensibilidade estética que é ao mesmo tempo crua e deslumbrante. O resultado é uma história que desconstrói o conto de fadas empacotado em Hollywood e entrega algo infinitamente mais real, mais doloroso e mais memorável.
O roteiro é um dos pilares mais fortes do filme. Sean Baker consegue equilibrar com diálogos naturalistas, momentos de leveza cômica e reflexões sobre poder, classe social e trabalho sexual. A protagonista Ani ou Anora, como é chamada ao longo do filme ganha profundidade e camadas como raramente se vê em personagens femininas. Interpretada por Mikey Madison em sua performance mais impactante até agora, Ani é uma protagonista complexa em todos os sentidos. Vivendo como trabalhadora do sexo no Brooklyn, Ani encara os desafios diários de sua rotina com uma mistura de pragmatismo e cuidado: fazendo piadas, comendo no meio do expediente e conversando com amigas, enquanto navega por um ambiente cercado de preconceitos.
A genialidade do roteiro está em construir sua trajetória sem didatismos ou paternalismos. Ani, com sua personalidade forte e vulnerável, não é apresentada como vítima absoluta nem como heroína, mas como uma mulher cuja humanidade é mostrada em cada cena. Madison entrega uma interpretação recheada de nuances, mesclando força e ingenuidade. É impossível não se conectar com sua Ani, uma personagem cujas escolhas imprudentes têm consequências trágicas, mas que nunca perde sua dignidade. A relação da personagem com Ivan (Mark Eydelshteyn), o filho de um oligarca russo, revela a disparidade crua entre aqueles que sofrem com a desigualdade social e aqueles que permanecem acima de quaisquer consequências.
Sean Baker não se contenta em contar uma história; ele transforma Anora em uma experiência cinematográfica quase tátil. A direção é precisa, criativa e permeada por uma energia que captura tanto o caos quanto a esperança de sua narrativa. Baker sabe perfeitamente quando desacelerar para explorar os momentos mais íntimos – entre Ani e suas amigas ou mesmo suas interações mais vulneráveis com Ivan – e quando escalar a trama para o puro absurdo.
No segundo ato, quando a família de Ivan entra na história e uma comitiva de capangas chega ao Brooklyn para anular o casamento do casal, Baker eleva a comédia ao limite do tragicômico. O caos instaurado nas situações – tragicômicas e absurdas – que se seguem é um triunfo criativo, ao mesmo tempo em que serve como veículo para uma crítica contundente às dinâmicas de poder. Baker expõe o ridículo dessas situações, mas nunca de forma gratuita, usando o exagero como forma de intensificar o impacto emocional e crítico do longa.
A fotografia é, simplesmente, espetacular. O filme transita entre momentos de intensa intimidade e sequências grandiosas embaladas pela vibrante estética neon do Brooklyn. A fotografia captura a pulsação da cidade: é ao mesmo tempo elétrica e sufocante, delicada e brutal. Sean Baker sabe como usar a paleta de cores saturada para amplificar a viagem emocional de sua protagonista – seja nos tons quentes que iluminam uma noitada de sonhos com Ivan ou os tons frios e desolados que refletem as duras investidas do mundo ao redor de Ani.
A trilha sonora também brilha como um elemento-chave. Sua força vai além de complementar a narrativa; ela é uma extensão dos eventos do filme, capaz de carregar peso dramático em cenas silenciosas e intensificar o ritmo das sequências mais caóticas. A escolha precisa de cada faixa, como TATU na trilha sonora é um golpe de mestre: ao mesmo tempo nostálgica e provocativa, sua presença musical ressoa de forma poderosa, contribuindo para um ambiente que mistura o clássico e o moderno, o leve e o pesado.
Embora Anora seja vendido como uma comédia romântica – e, em determinados momentos, flerte com esse tom –, é na desconstrução do gênero que a obra realmente brilha. Baker utiliza as convenções do conto de fadas moderno para expor a disparidade de classes e as injustiças intrínsecas entre aqueles que têm poder e aqueles que vivem à margem.
Ivan, o filho de uma família rica que age com desdém sobre suas ações, é o completo oposto de Ani, que precisa lidar com todas as consequências de suas escolhas. Enquanto ele retorna para a Rússia sem nenhuma marca de sua experiência, ela é deixada para recolher os pedaços da vida que tentou construir. O filme não dá respostas fáceis nem oferece conforto. O final é desconfortável, porém autêntico, refletindo de forma honesta as desigualdades de um mundo onde poder e privilégio ditam as regras.
Anora não é apenas um grande filme; é uma obra que reafirma o talento de Sean Baker. Em um ano competitivo, é difícil imaginar que o filme não continue ganhando atenção na temporada de prêmios. É um filme que transcende os rótulos, ao mesmo tempo acessível e desafiador, comédia e drama, deslumbrante e desconfortável.
Você encontra Anora a partir do dia 23 de Janeiro nos Cinemas.
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A Real Pain é um marcante longa-metragem roteirizado, dirigido, produzido e estrelado por Jesse Eisenberg, que teve passagem pelo Festival do Rio 2024. Esta comédia dramática nos proporciona uma experiência emocional profunda ao abordar temas como o luto, a memória e as complexidades das gerações de imigrantes. O filme acompanha dois primos que saem dos Estados Unidos para uma viagem à Polônia, na tentativa de se reconectarem com suas raízes judaicas.
Kieran Culkin, cuja atuação já lhe rendeu um Globo de Ouro recentemente, rouba a cena com uma performance que é tanto hilária quanto comovente. Se em Succession seu personagem Roman Roy era uma figura cheia de ironia e tensão, aqui Culkin entrega algo mais multidimensional. Sua expressão está sempre viva, oscilando rapidamente entre ironia, comédia e hostilidade brincalhona, conforme ele encapsula a complexidade da dor e do humor humano.
Eisenberg permite que o filme seja frequentemente dominado pela atuação de Culkin. Há muitos closes em Culkin, revelando lentamente as camadas emocionais ocultas, dando-nos momentos em que parece possível enxergar seu futuro eu mais velho e o seu passado/presente marcado por dor, uma figura atemporal que poderia ter qualquer idade. Esse toque de direção revela a profundidade da dor e da vivência autêntica que permeia todo o filme.
Mas o que faz de A Real Pain uma experiência única é a imersão no “entre” — a extensa janela de autodescoberta que habita o silêncio do abrir e fechar das cortinas de um espetáculo. Através de uma viagem repleta de memórias e paisagens arquitetônicas da Polônia, o reconhecimento histórico e pessoal se torna palpável à medida que os primos exploram desde campo de concentração até monumentos de celebração, transformando o tour turístico em uma jornada de reverência e contemplação.
Em meio às gargalhadas e às lágrimas, o filme é, de fato, uma ode às dores da alma, mostrando-nos como rir em meio aos trágicos momentos da vida adulta. Eisenberg nos desafia a ver a solidão não apenas como isolamento, mas como uma oportunidade para a solitude e a percepção do luto por uma nova ótica. Ele utiliza sua falta de tato social e humor peculiar para oferecer uma narrativa cativante sobre dois primos que vivem momentos distintos, mas encontram um terreno comum na busca por suas raízes.
A Real Pain convida o espectador a embarcar em uma narrativa emocional que é menos sobre como tudo termina, mas sobre a jornada em si – o caminho entre o começo e o fim, onde a vida realmente acontece. O filme, com seu caráter individual e identidade distintiva, transforma as perdas da vida em comédia e contemplação, trazendo à tona a beleza na dor e no renascimento. Afinal, somos todos sobreviventes porque viver é sobreviver a verdadeira dor.
Você encontra A Verdadeira Dor a partir do dia 30 de Janeiro nos Cinemas.
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O fascinante mundo da ópera e a trágica vida de sua maior estrela, Maria Callas, ganham vida no drama biográfico Maria, dirigido por Pablo Larraín e roteirizado por Steven Knight. Conhecido por trazer à grande tela histórias complexas de mulheres notáveis, como visto em Jackie e Spencer, Larraín oferece, mais uma vez, uma narrativa envolvente ao lado do roteirista Steven Knight. A interpretação de Angelina Jolie como protagonista promete ser uma grande atuação para o ano, potencialmente direcionada a uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz.
Maria se concentra na última semana de vida da lendária soprano greco-americana, cuja carreira foi marcada por uma técnica de bel canto impecável, um poderoso alcance vocal e interpretações psicológicas profundas. Através da delicada direção de Larraín, acompanhamos Callas não apenas em seu ofício, mas também nos delírios causados pelo abuso de Mandrax, que combinados com uma vida solitária contrastam intensamente com seu amor pela adoração do público.
“Não estou com fome. Venho aos restaurantes para ser adorada.”
A trama mergulha em questões íntimas, revelando os efeitos devastadores da solidão de Callas e seu amor complexo pelo magnata Aristotle Onassis. A atuação de Jolie é destacada não apenas pelos treinos extensivos que a atriz passou para capturar a postura, respiração, sotaque e o próprio canto de Callas, mas também pela sua habilidade em transmitir a angústia e vulnerabilidade da cantora nos seus momentos mais debilitados. A performance de Jolie é sutil e poderosa.
O filme se diferencia pela sua construção visual. A fotografia e montagem são combinadas, alternando entre filmagens em preto e branco e cenas coloridas. Os closes de Maria e os vídeos históricos de suas apresentações trazem uma autenticidade que mergulha o espectador na realidade daquele tempo. As cenas de ópera são meticulosamente recriadas, transportando o público aos memoráveis palcos de Londres, Milão, e Paris. É importante notar também as performances de Haluk Bilginer e Valeria Golino, que, como personagens secundários, acrescentam camadas adicionais ao drama da vida real de Callas. Eles complementam a jornada emocional de Maria.
Maria vai além de apenas uma simples biografia; é um retrato sensível de uma mulher cuja vida foi tão cheia de glórias quanto de dores. Pablo Larraín e Angelina Jolie criaram uma obra que não só honra a memória de Maria Callas, mas também evidencia a complexidade de seu legado.
Com a temporada de prêmios se aproximando, é justo afirmar que Maria posiciona-se como um concorrente, especialmente nas categorias de Melhor Atriz e quem sabe Melhor Direção. A performance de Jolie já garantiu uma indicação ao Globo de Ouro. Em suma, “Maria” é um filme que oferece uma visão rara e intimista de uma das vozes mais icônicas da ópera mundial e apresenta um trabalho cinematográfico que é, ao mesmo tempo, visualmente deslumbrante e emocionalmente impactante.
Você encontra Maria a partir do dia 16 de Janeiro nos Cinemas.
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Retrato de um Certo Oriente é uma adaptação do premiado romance Relato de um Certo Oriente de Milton Hatoum. A trama inicia-se em 1949, quando os irmãos libaneses católicos Emilie e Emir abandonam um Líbano em iminência de guerra, embarcando em direção ao desconhecido Brasil. Durante a travessia, Emilie se apaixona pelo comerciante muçulmano Omar, despertando o ciúme incontrolável de Emir, que culpa os muçulmanos pela morte trágica de seus pais. A viagem torna-se ainda mais dramática quando uma briga entre Emir e Omar resulta em um tiro acidental que fere gravemente Emir. Emilie, desesperada, busca ajuda em uma aldeia indígena na selva amazônica para salvar a vida de seu irmão. Recuperado, eles continuam para Manaus, onde as escolhas de Emilie levam a consequências trágicas.
Filmado em um impressionante preto e branco, a cinematografia de Pierre de Kerchove é uma das maiores forças do filme. Cada cena é cuidadosamente elaborada. Os planos fechados trazem uma intimidade poderosa, permitindo que o público se conecte profundamente com as emoções dos personagens. Em diversos momentos, a fotografia remete às obras de Sebastião Salgado, transportando o espectador para um “quadro amazônico” de rara beleza.
Marcelo Gomes, cuja filmografia inclui obras como Cinema, Aspirinas e Urubus e Viajo porque preciso, Volto porque te amo, demonstra novamente sua habilidade em traduzir histórias complexas e humanas para o cinema. A adaptação de “Relato de um Certo Oriente” é tratada com delicada sensibilidade, balanceando a fidelidade ao texto literário com uma abordagem cinematográfica inventiva. Gomes consegue transformar as memórias e fluxos de consciência do romance em uma narrativa visualmente rica e emocionalmente carregada.
A trilha sonora sutil e evocativa complementa perfeitamente a estética do filme, onde muitas vezes o som é de uma natureza presente. Em vez de dominar a narrativa, a música trabalha em harmoniosa sinergia com a cinematografia, sublinhando momentos de tensão e introspecção sem jamais distrair o público da história central.
Além da fotografia, as performances são outro pilar de Retrato de um Certo Oriente. Wafa’a Celine Halawi oferece uma Emilie multifacetada e profunda, enquanto Zakaria Kaakour e Charbel Kamel trazem intensidade e autenticidade aos seus papéis. A participação de Rosa Peixoto e sua família, emprestando rituais e costumes indígenas, adiciona um valioso contraste cultural à trama. A narrativa aborda questões de memória, tradição e identidade de maneira que ressoa profundamente.
Retrato de um Certo Oriente é um estudo íntimo sobre memória, paixão e preconceito, imergido no contexto da imigração libanesa na Amazônia brasileira. A obra é uma homenagem calorosa à complexidade emocional e cultural do romance de Milton Hatoum, traduzida para a tela com sublime maestria por Marcelo Gomes.
Marcelo Gomes entrega um épico íntimo que permanece fiel ao espírito do romance original, ao mesmo tempo em que cria algo profundamente novo e admirável.
Você encontra Retrato de Um Certo Oriente a partir do dia 21 de Novembro nos Cinemas.
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