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A Substância

Quem assistir A Substância, o novo filme de Demi Moore, certamente não o esquecerá. Ambientado na vibrante cidade de Los Angeles, o filme abre com um plano da icônica Calçada da Fama de Hollywood, onde uma nova estrela está sendo instalada. Essa estrela pertence à atriz Elisabeth Sparkle, protagonizada por Moore, e logo é vista desintegrando-se, rachada e pisoteada — um prenúncio simbólico dos temas centrais da narrativa: juventude, beleza e pertencimento.

Elisabeth, com mais de 50 anos e recém-demitida de um programa de TV devido à baixa audiência, recorre a medidas extremas para recriar uma versão perfeita de si mesma. O que começa como um filme feminista, abordando preconceito etário e padrões de beleza, rapidamente se transforma em algo distintamente inesquecível e profundo. Sparkle recorre a um misterioso processo de “clonagem caseira”, com a ajuda de uma droga ilícita, resultando no nascimento de Sue, uma jovem e alegre sósia (interpretada por Margaret Qualley) que literalmente emerge de sua coluna vertebral.

Esse ritual de rejuvenescimento, repetido a cada sete dias, está no cerne da crítica do filme. A condição de troca cíclica de corpos revela as consequências devastadoras e enfatiza a transitoriedade da juventude e da beleza. Elisabeth é apresentada como a “matriz,” vivendo sob a constante pressão do descontentamento corporal à medida que envelhece, metaforicamente ilustrando que até a rainha má já foi uma princesa, assombrada pelo reflexo que lhe lembra do tempo que roubou sua juventude.

À medida que Elisabeth recorre à sua versão jovem para alcançar seus objetivos, inicialmente consegue o que sempre desejou. No entanto, a narrativa leva um rumo sombrio e visceral quando começamos a ver os efeitos adversos de suas escolhas. A Substância não economiza em elementos de horror corporal, repleto de sangue e momentos profundamente inquietantes. Um marco para fãs de Julia Ducournau, fortemente conhecida pelos filmes de horror corporal que vão de curtas a longas.

A atuação de Demi Moore, como uma estrela em declínio, é desprovida de glamour. Ela abraça a crueza e a vulnerabilidade do papel, destacando a beleza deteriorada de Elisabeth Sparkle. “De certa forma, eu senti que queria fazer isso”, ela explica. “Parte do que tornou interessante foi ir a um lugar tão cru e vulnerável, para realmente me desprender. E foi bastante libertador em muitos aspectos.”

A narrativa também desconstrói expectativas associadas a contos de fadas, onde a conclusão do filme integra uma linha impactante de Dennis Quaid, “meninas bonitas devem sempre sorrir,” sublinhando as pressões persistentes em torno da feminilidade e dos padrões de beleza. Esse diálogo, uma crítica ao idealismo dos contos de princesas, reforça a brutalidade da realidade abordada no filme.

Visualmente, a diretora Coralie Fargeat cria um universo que mistura glamour, medo e asco. Sua direção, somada às performances estelares de Moore e Qualley, é vital para a eficácia do filme como uma alegoria sobre os perigos da obsessão pela perfeição física. A montagem do filme, com transições secas e cruas, mantém o espectador imerso na brutalidade da narrativa.

“O ponto crítico está na sensação contínua de que o tempo está se esgotando,” comenta Fargeat. Esse sentimento de urgência é tangível ao longo de todo o filme, enfatizando a efemeridade da beleza e a pressão impiedosa para mantê-la.

A estreia de A Substância no Festival de Cannes gerou muitos comentários, e o filme rapidamente se tornou um dos mais discutidos da edição de 2024. Atualmente, está nos cinemas e chegará ao catálogo da MUBI em 31 de outubro, oferecendo uma narrativa perturbadora e relevante.

A exploração do “body horror” no filme não é meramente para causar choque, mas para refletir as barreiras físicas, corporais e emocionais que as pessoas atravessam para alcançar os padrões de beleza. Em uma era de procedimentos estéticos sem fim, o filme apresenta uma perspectiva moderna, crítica e, em muitos momentos, surrealista sobre a obsessão pela juventude e pela aparência.

A Substância é um filme que provoca reflexão, desconforto e admiração, não apenas desafia os limites do horror convencional, mas também oferece uma crítica impactante à obsessão com a juventude e a beleza.

Você encontra A Substância nos cinemas e a partir do dia 31 de Outubro, na Mubi.

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Até o próximo texto.

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O Último Pub: Um Último Brinde ao Realismo Social de Ken Loach

Ken Loach, um dos grandes mestres do realismo social britânico, oferece com O Último Pub uma narrativa que une o estilo inconfundível do cineasta com temas profundamente relevantes. Contudo, a abordagem, desta vez, é um tanto didática e previsível, o que dilui parte do impacto emocional que Loach busca alcançar.

Ambientado em um vilarejo decadente no nordeste da Inglaterra, o filme segue TJ Ballantyne (Dave Turner), o proprietário de um pub que é o último refúgio de uma comunidade devastada pelo fechamento das minas de carvão. A chegada de refugiados sírios, incluindo a jovem Yara (Ebla Mari), agita a rotina do local e expõe os preconceitos e tensões latentes na população.

O roteiro de Paul Laverty, colaborador frequente de Loach, não se esquiva do humor ácido, mas é predominantemente sério e ponderado. Laverty passa suas mensagens de forma clara e direta, quase didática, fazendo com que os temas do filme sejam transmitidos sem intermediários. Isso, no entanto, acaba por criar uma sensação de que estamos sendo conduzidos por uma narrativa com um propósito predefinido, deixando pouco espaço para a sutileza.

Dave Turner traz uma performance ancorada e melancólica a TJ, transmitindo a essência de um homem dividido entre seu compromisso com os habituais clientes do pub, muitos com visões xenofóbicas, e seu desejo de ajudar os refugiados. Ebla Mari, por outro lado, embute em Yara uma força tranquila e uma determinação, apesar de algumas falas excessivamente expositivas.

O filme não se esquiva das suas intenções. Quando TJ fala sobre a injustiça e como frequentemente culpamos quem está abaixo de nós na hierarquia social, ou quando Yara explica seu exílio de forma didática.

Os coadjuvantes, como Charlie (Trevor Fox), o preconceituoso local, e Tania (Debbie Honeywood), a idealista da vila, ajudam a povoar o cenário com figuras credíveis, que refletem o realismo naturalista que Loach sempre perseguiu. Essa forte atuação do elenco, juntamente com a fotografia naturalista de Robbie Ryan, que capta de forma visceral a dureza da vida no vilarejo, contrapõem-se à simplicidade do roteiro.

“É preciso força para fazer algo bonito.”

A estrutura do filme, porém, tende a seguir caminhos previsíveis, com mortes e interações supostamente projetadas para arrancar lágrimas. Esses mecanismos narrativos, embora efetivos para provocar reações emocionais, não se sentem genuínos, dando ao público a sensação de que suas emoções estão sendo manipuladas.

O Último Pub é, sem dúvida, uma obra carregada de boas intenções e mensagens importantes, especialmente em um contexto global onde os fluxos migratórios e os preconceitos viram pautas constantes. Ainda assim, a pregação explícita e a falta de nuances na narrativa podem afastar parte da audiência que busca uma conexão emocional mais autêntica e uma experiência cinematográfica menos direcionada.

“Isso não é caridade, é solidariedade.”

Ken Loach, em seu suposto último filme, oferece um brinde ao seu legado de realismo social, mas talvez um brinde que deixa um gosto um tanto agridoce na boca. O Último Pub nos lembra do poder das pequenas gentilezas e da solidariedade em tempos de crise, mas o faz de uma maneira que, por vezes, sacrifica a autenticidade em favor do didatismo.

Você encontra O Último Pub no Now.

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Até o próximo texto.

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Ainda Estou Aqui

Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, possui uma combinação meticulosa de potentes atuações, narrativa e cinematografia diferenciadsa, elementos que tornam este filme uma experiência inesquecível.

Fernanda Torres e Selton Mello desempenham um papel crucial na transmissão dos sentimentos de seus personagens, criando uma ligação visceral entre a audiência e a Família Paiva. Através de atuações autênticas e comoventes, os atores conseguem evocar uma gama de emoções complexas, desde a desesperança até a determinação incansável. Esse feito, no entanto, não é atingido unicamente através de suas performances, mas pela escolha perfeita dos atores que enriquecem o roteiro já robusto de Murilo Hauser e Heitor Lorega.

Walter Salles, conhecido por seu trabalho em “Central do Brasil” (1998), emprega sua habilidade em criar um tom intimista e familiar que permeia toda a narrativa. A fotografia e montagem são pontos altos no filme, destacando-se no cenário nacional por sua originalidade e profundidade estética. Cada enquadramento e cada movimento de câmera são calculados para transportar o público diretamente para os anos 1970, uma época marcada pelo endurecimento da ditadura militar no Brasil.

Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o roteiro de Ainda Estou Aqui oferece uma trama densa e emocionalmente carregada, que retrata a luta de Eunice (Fernanda Torres) para descobrir o paradeiro de seu marido, Rubens Paiva (Selton Mello), um engenheiro e ex-deputado levado de casa e nunca mais entregue. A narrativa não é apenas um relato histórico, mas uma exploração das repercussões emocionais e psicológicas da ditadura, que continua a ressoar nas memórias até os dias de hoje.

Os aspectos técnicos do filme são impecáveis, com uma fotografia que captura a essência da época e uma montagem que permite ao filme manter um ritmo perfeito, junto a trilha sonora marcada por Gal, Caetano, Mutantes, dentre outros.

A universalidade da história é uma das suas maiores virtudes. O filme transcende a especificidade do contexto brasileiro da ditadura militar para abordar temas de busca pela verdade, justiça e resiliência frente à opressão. A coprodução com a França e a linguagem em português não impedem que a trama se comunique com públicos internacionais, fazendo de Ainda Estou Aqui um exemplo forte de uma produção brasileira que tem potencial para dialogar com diferentes culturas e contextos.

Ainda Estou Aqui  é uma experiência emocional que convoca o público a refletir sobre um período sombrio da história, ainda tão próximo de nossa realidade. O choque proporcionado por eventos reais e tangíveis proporciona um nível de engajamento emocional raro, deixando o público profundamente tocado e contemplativo.

Em suma, Ainda Estou Aqui se destaca como uma obra-prima do cinema nacional, oferecendo uma combinação de atuações sublimes, direção sensível e uma narrativa histórica que mantém sua relevância e impacto emocional.

Você encontra Ainda Estou Aqui nos principais cinemas do Brasil a partir do dia 7 de Novembro.

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Até o próximo texto.

 

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A Vilã das Nove

Em A Vilã das Nove, Roberta (Karine Teles) está finalmente vivendo a melhor fase de sua vida. Recém-divorciada e desfrutando de uma nova vida ao lado de sua filha Nara (Laura Pessoa), Roberta se sente revigorada e pronta para abraçar novas oportunidades. No entanto, sua paz é abalada quando descobre que o seu passado, marcado por escolhas difíceis e abandono, foi transformado em enredo de uma novela das nove, onde ela é retratada como a vilã.

A Vilã das Nove, dirigido por Teodoro Poppovic, é uma comédia dramática que se utiliza do cenário da televisão brasileira, familiar ao público, para contar uma história curiosa e humanizada. O filme nos leva ao mundo das telenovelas, o que torna impossível não lembrar imediatamente das grandes produções da Globo, SBT, e Record que moldaram gerações com suas tramas e personagens memoráveis, seja por uma cena ou pela caracterização da personagem dentro da novela que está dentro do filme.

Poppovic dirige uma narrativa que funde o melodrama característico das telenovelas brasileiras com uma metalinguagem singularmente envolvente. O roteiro é cuidadoso ao traçar a linha tênue entre a ficção televisiva e a vida real, explorando como nossas histórias pessoais podem ser reinterpretadas e distorcidas quando entram na esfera pública.

Roberta (Karine Teles) descobre que sua vida se transformou na trama de uma novela das nove, um horário nobre da TV brasileira onde personagens icônicos como Odete Roitman da Globo e Maria do Bairro do SBT brilharam intensamente. A maneira como a vida de Roberta é meticulosamente desenrolada, criando um paralelismo com as celebres novelas do passado, como Avenida Brasil e Senhora do Destino, é ao mesmo tempo nostálgica e inovadora.

Karine Teles oferece uma atuação poderosa e autêntica como Roberta, cuja crise existencial e busca por redenção ancoram o filme emocionalmente. Alice Wegmann, no papel de Débora, imbuída de ressentimento e dor, complementa de forma magistral a interpretação de sua mãe fictícia. O restante do elenco, incluindo Otto Jr., Camila Márdila e Antônio Pitanga, contribui significativamente para a profundidade e autenticidade da narrativa.

A trilha sonora é outro destaque que vai de clássicos de Marina Lima a composições internacionais cuidadosamente escolhidas. Cada música é pensada para sublinhar o drama e a comédia. A fotografia e edição são bem executadas, capturando acontecimentos do presente, passado e da gravação da novela. A preparação vocal do elenco, uma parte frequentemente negligenciada e raramente mostrada ao público que desconhece as funções envolvidas na realização de uma obra audiovisual, ganha destaque.

A metalinguagem presente no filme, ao mostrar as etapas de criação de uma novela – desde a concepção do roteiro até as gravações –, oferece um olhar sobre os bastidores da televisão. O diálogo que leva a entender que “Tudo se resolve no roteiro” encapsula a essência do que faz uma boa telenovela ou o que a leva ao seu abismo, destacando a importância de uma boa narrativa, seja na vida real ou na ficção.

Vilã das Nove não é apenas uma homenagem ao mundo das telenovelas brasileiras, mas também uma exploração profunda dos temas de arrependimento, redenção e relações familiares. Poppovic entrega um filme que é, ao mesmo tempo, um tributo e uma crítica ao poder e influência das produções televisivas na vida das pessoas. Com grandes atuações e um roteiro com diálogos potentes, o filme teve as suas primeiras exibições no Festival do Rio.

 

Você encontra A Vilã das Nove nos principais cinemas do Brasil a partir do dia 31 de Outubro.

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 Malês: Uma Luta Pela Liberdade Que Ecoa Até Hoje

Antonio Pitanga, ícone do Cinema Novo, retorna em grande estilo com Malês, um filme profundamente comovente e historicamente importante que aborda a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador, Bahia, em 1835. Este momento crucial da história afro-brasileira é capturado com sensibilidade e vigor, resultando em uma obra cinematográfica que é ao mesmo tempo educativa e emocionalmente impactante.

A trama segue dois jovens muçulmanos africanos que são arrancados de sua terra natal e levados como escravos para o Brasil. Durante esta dolorosa jornada, uma história de resiliência e busca incessante pela liberdade se desenrola. Sequestrados do seio de suas famílias e comunidades, eles são separados e forçados a lutar, tanto física quanto emocionalmente, para sobreviver e se reencontrar. Nesse percurso, acabam se envolvendo na maior insurreição de escravizados da história do Brasil, protagonizada por 600 escravizados muçulmanos. Esta rebelião, embora sufocada em menos de 48 horas com a repressão violenta e assassinato de seus líderes, deixou uma marca indelével na história.

“Se o mundo quer fazer meu filho de escravo, eu quero mudar o mundo.”

Durante a pré-estreia, que integrou a 26ª edição do Festival do Rio e ocorreu em uma sessão especial no Cine Odeon, nomes de peso como Lázaro Ramos, Benedita da Silva e Maju Coutinho compareceram para prestigiar o filme. Antonio Pitanga, com seus filhos Camila e Rocco Pitanga, marcou presença, destacando a importância pessoal e histórica do projeto.

Pitanga, interpretando Pacífico Licutan, um dos líderes malês, demonstra uma atuação carismática e cheia de nuances. Seu personagem enfatiza a importância da união entre diferentes povos, tribos e religiões para o sucesso da revolta e o fim da escravidão. A produção também retrata outras importantes lideranças, como Ahuna (Rodrigo de Odé), Manuel Calafate (Bukassa Kabengele), Vitório Sule (Heraldo de Deus) e Luís Sanim (Thiago Justino), oferecendo ao público um retrato detalhado e multifacetado dos líderes dessa insurreição histórica.

” O tempo se alarga para caber todas as histórias.”

Sob a direção de Pitanga, o filme consegue balancear intimidade e grandiosidade, capturando os detalhes da vida cotidiana dos escravizados enquanto mostra a magnitude de sua coragem e sacrifício. A fotografia, que utiliza locações autênticas em Cachoeira, Salvador e Maricá, é visualmente deslumbrante e carrega um peso histórico que transporta o espectador diretamente para a Bahia do século XIX.

O roteiro de Manuela Dias é outro ponto alto, buscando não apenas narrar a Revolta dos Malês, mas também explorar a profundidade da luta contra o racismo e a intolerância religiosa por meio de fortes diálogos. Manuela constrói uma narrativa rica e de múltiplas camadas, que convida o espectador a refletir sobre questões ainda pertinentes na sociedade contemporânea.

A trilha sonora, com tambores fortemente presentes, complementa a narrativa ao evocar a espiritualidade e a resistência dos personagens. A direção de arte e o figurino também merecem destaque, proporcionando uma imersão completa no contexto histórico do filme.

“Não é ajudar, é participar.”

Malês não é apenas um filme sobre o passado; é uma obra que ressoa fortemente no presente. Antonio Pitanga, aos 85 anos, entrega uma direção apaixonada e uma interpretação poderosa, apoiado por um elenco talentoso e uma equipe dedicada. O filme é, acima de tudo, um tributo à resiliência e à coragem daqueles que lutaram e continuam a lutar contra a opressão.

Com uma estreia programada para 14 de novembro, Malês não só reconta uma história essencial da cultura afro-brasileira, mas também promove uma reflexão profunda sobre as desigualdades atuais.

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O Quarto ao Lado – Almodóvar em Novas Terras, Mesma Essência

Pedro Almodóvar, um dos cineastas mais célebres da Espanha, faz sua estreia na língua inglesa com O Quarto ao Lado, recém exibido no Festival do Rio 2024. Essa obra que conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, não só celebra a jornada linguística do diretor, mas consolida sua habilidade inigualável de oferecer narrativas emocionalmente ricas e visualmente cativantes.

Inspirado no livro O que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez, o longa conta a história de Ingrid (interpretado por Julianne Moore), uma escritora consagrada que descobre que sua antiga colega, Martha (vivida por Tilda Swinton), está lutando contra um câncer incurável. Após reencontrar-se com Martha no hospital e perceber sua solidão, Ingrid aceita um inusitado convite para se juntar a ela em uma casa isolada em Woodstock. As duas tentam reencontrar a paz enquanto se deparam com dilemas éticos e emocionais atemporais.

Almodóvar, mesmo filmando em um idioma diferente do seu habitual, mantém sua assinatura. O Quarto ao Lado conserva belos enquadramentos geométricos, cores vibrantes sempre compostas pelo amarelo e vermelho vivos e uma profundidade emocional que são marcas registradas do diretor. O filme usa a beleza visual para contrastar temas pesados como a doença terminal e a perda, oferecendo uma rica experiência visual e psicológica. Entretanto, discutir sobre eutanásia e finitude dentro desses laços não parece ser o maior foco do diretor, que prefere explorar a complexidade e a cumplicidade das relações humanas.

O roteiro, embora não seja revolucionário em termos de inovação narrativa, surpreende ao entrelaçar diálogos cômicos com temas tão densos. Almodóvar demonstra novamente sua habilidade em encontrar leveza e até risos em momentos que poderiam ser esmagadoramente sombrios. Esse toque de humor não só alivia a intensidade do filme, mas também humaniza as personagens, tornando-as mais acessíveis e reais.

“Há muitas formas de viver uma tragédia”.

Tilda Swinton oferece uma performance inigualável. Seu retrato de Martha, tanto fisicamente combalido quanto psicologicamente complexo, é fascinante. Swinton navega entre serenidade e impaciência, ilustrando de maneira crível a oscilação emocional que atravessa aqueles que enfrentam doenças graves e as consequências dos tratamentos, mesmo quando paliativos. Além disso, sua habilidade de inserir um timing cômico em momentos inesperados é uma demonstração de seu talento multifacetado.

Julianne Moore, por sua vez, encara um desafio ainda maior com Ingrid, uma personagem que deve equilibrar empatia e força diante do sofrimento da amiga. Moore encanta e emociona com sua profundidade e vulnerabilidade, oferecendo uma performance que conquista a empatia do espectador.

” Não entendo como algo vivo tem que morrer.”

Eduard Grau, em sua primeira colaboração com Almodóvar, captura a essência visual do diretor, oferecendo uma fotografia que é ao mesmo tempo familiar e revigorante. A trilha sonora, mais uma vez assinada pelo colaborador habitual Alberto Iglesias, complementa a narrativa com uma musicalidade emocionalmente carregada, enriquecendo ainda mais a experiência do público. Há momentos na trilha que o espectador vai se sentir num suspense Hitchcockiano e em outros numa trama Nova Iorquina Woody Alleniana.

O Quarto ao Lado não é apenas o marco de estreia de Pedro Almodóvar no cinema de língua inglesa, mas uma obra que reafirma seu talento inconfundível para explorar o drama humano através de uma lente de compaixão, humor e sensibilidade. A narrativa, embora se mantenha em terreno familiar para o diretor, é intensificada pelas atuações cativantes de Julianne Moore e Tilda Swinton. Almodóvar consegue multiplicar a cumplicidade entre suas personagens sem cair no barato dos discursos edificantes, criando uma experiência que é, ao mesmo tempo, delicada e potente.

Ao redirecionar seu olhar para novas terras, o diretor prova que seu talento transcende idiomas, e que o coração de suas histórias  bate forte através da complexidade de suas personagens, não importa a língua em que sejam contadas. O Quarto ao Lado estreia nos cinemas brasileiros no dia 24 de outubro e será exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo entre os dias 17 e 30 de outubro.

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Johatsu – Os Evaporados

Johatsu – Os Evaporados é um documentário que se aprofunda no misterioso fenômeno japonês dos Johatsu, ou os evaporados. Esses indivíduos, por diversas razões — como vergonha, dívidas ou falência pessoal — optam por desaparecer e deixar suas vidas para trás, muitas vezes com o apoio de empresas especializadas chamadas mudanças noturnas. Esse filme revela os conflitos internos dos que desapareceram e as consequências para aqueles que eles abandonaram.

A dupla de diretores Andreas Hartmann e Arata Mori traz à tela uma abordagem sensível e perturbadora sobre um fenômeno tão intrincado e culturalmente específico como o dos Johatsu. A coprodução entre Japão e Alemanha enriquece a narrativa ao incorporar diferentes prismas culturais, mantendo o foco na essência de um Japão moderno ainda preso a códigos de honra tradicionais.

O documentário começa contextualizando o histórico das mudanças noturnas, empresas que auxiliam pessoas a desaparecer e recomeçar suas vidas. Originárias da década de 90, essas empresas surgiram como uma resposta ao colapso da bolha econômica japonesa, quando muitas pessoas, incapazes de honrar suas dívidas, procuraram uma saída extrema. A pressão social intensa e a iminência da vergonha pública transformaram essa prática em algo recorrente, similar aos hikikomori – o retraimento extremo de jovens devido à pressão social e ansiedade.

O filme discute como o código de honra japonês, o bushido, influencia profundamente a maneira como os japoneses lidam com o fracasso e a vergonha. A narrativa é poderosa ao trazer pessoas que cogitam o suicídio até  chegarem ao fenômeno dos Johatsu. A vergonha, que muitos acreditam só poder ser removida por medidas radicais como o suicídio, é apresentada como uma força devastadora que leva milhares a preferir a anulação de suas existências a viver com sua realidade imperfeita.

A cinematografia do documentário é imersiva e respeitosa, nunca sensacionalista. Hartmann e Mori apresentam as histórias de forma que o espectador se sinta envolvido na luta interna e nas esperanças dos indivíduos. A trilha sonora, fortemente marcada pelos tambores japoneses taiko, contribui para a imersão, enfatizando a tensão e a gravidade dos temas abordados.

Uma curiosidade intrigante é que Johatsu não pode ser exibido no Japão, uma condição imposta pelos próprios participantes que temiam pela sua segurança e privacidade. Esta restrição adiciona uma camada de urgência e sigilo, destacando a profundidade do tabu em torno do assunto no próprio país de origem.

Ao longo do documentário, vemos não apenas o impacto devastador sobre as vidas dos que optam por desaparecer, mas também sobre aqueles que são deixados para trás. Familiares e amigos ficam com um vazio incessante, questionando a decisão de seus entes queridos e lidando com as consequências de um desaparecimento que muitas vezes não permite um encerramento emocional.

Johatsu é um documentário essencial que mergulha no turbilhão emocional e cultural dos ‘evaporados’ do Japão. Andreas Hartmann e Arata Mori oferecem ao público ocidental um olhar raro e penetrante sobre uma prática tão enraizada quanto oculta. Ganhador da Competição Principal no Festival Internacional de Documentários de Munique, o filme é uma crítica incisiva às pressões sociais extremas e aos códigos de honra que continuam a influenciar fatalmente a vida moderna no Japão. Com sua estreia em Macau e uma trilha sonora potente, este documentário é um testemunho imperdível da resistência humana e da busca desesperada por redenção e anonimato.

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Manga D`Terra

Manga d’Terra (2023) é o novo longa-metragem do luso-suíço Basil da Cunha que acaba de ser exibido no Festival do Rio. A história gira em torno de Rosinha (Eliana Rosa), uma jovem cabo-verdiana que deixa seus filhos em sua terra natal, Cabo Verde, e se muda para Lisboa com a esperança de lhes proporcionar uma vida melhor. No entanto, em Lisboa, ela enfrenta uma vida permeada por invasões policiais e machismo. Rosinha, que aspira ser cantora, encontra nas mulheres de sua comunidade e na música o consolo e a força para lutar por seus sonhos.

Em Manga d’Terra, Basil da Cunha continua explorando o cotidiano do Bairro da Reboleira, uma área periférica de Lisboa. Diferente de seus trabalhos anteriores, que se concentravam no universo masculino, este filme coloca as mulheres no centro da narrativa, destacando suas lutas e resiliência em um ambiente adverso.

Eliana Rosa, que é portuguesa e cabo-verdiana, ilumina a tela com sua performance como Rosinha. A jovem cantora, agora transformada em atriz, dá vida a uma personagem cuja trajetória reflete muitas de suas próprias experiências. “Tudo isto é muito gratificante. Conseguir fazer um filme, trabalhar naquilo que quero trabalhar, viajar para outros países, cantar para as pessoas ouvirem. Tenho tudo o que quero”, disse. Rosa traz uma sinceridade incrível ao papel, especialmente nas cenas que abordam o assédio e o preconceito, reforçando a autenticidade de sua performance.

A abordagem de Basil da Cunha é intuitiva e orgânica, o que mantém uma estética documental. O filme é rico em improvisações e momentos espontâneos, capturados pela câmera na mão. Ele equilibra habilmente o drama com humor, criando cenas memoráveis que oscilam entre o trágico e o cômico.

Manga d’Terra vai além de um simples retrato sociológico do Bairro da Reboleira. Ele mergulha nas questões da imigração, identidade e pertencimento que se encontram fortemente presente nos dias de hoje em Lisboa. Rosinha, como muitos imigrantes, trabalha em subempregos e enfrenta constantes desafios por falta de documentos.  A narrativa destaca a força das mulheres da comunidade, que, apesar das adversidades, encontram maneiras de apoiar umas às outras e resistir.

O filme captura a coexistência de humor e drama no cotidiano do bairro.  Ele mostra como a vida no Bairro da Reboleira é cheia de situações engraçadas e relações humanas complexas, desde mulheres ciumentas sendo carregadas às costas até discussões hilariantes sobre fotos de Instagram. Essa dualidade torna o filme ainda mais real e acessível.

Manga d’Terra é uma obra-prima de Basil da Cunha, que combina profundidade emocional com autenticidade documental. A atuação de Eliana Rosa é o coração do filme, e sua transição de cantora para atriz é nada menos que brilhante. “Sou muito abençoada, juro”, diz Rosa, refletindo sua gratidão e entusiasmo por esta oportunidade.  Manga d’Terra é uma adição brilhante à filmografia de Da Cunha e uma jornada cinematográfica profundamente tocante que celebra a resiliência e a humanidade das mulheres imigrantes.

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Betânia

Betânia, dirigido e roteirizado por Marcello Botta, é um filme brasileiro que fez sua estreia mundial na mostra Panorama do Festival de Berlim 2024 e recentemente impressionou o público no Festival do Rio. Este longa explora a vida de Betânia, uma viúva de 65 anos, que retorna à sua aldeia natal nos Lençóis Maranhenses após a morte do marido. O filme é um mergulho cultural e sensorial que mistura tradição e modernidade, introspecção e choque cultural.

A narrativa segue Betânia, que, após a morte do marido, é convencida pelas filhas a voltar para sua aldeia. Lá, enfrenta os desafios de uma vida simples em contraste com as novas tecnologias e a modernidade que chegam à região. O filme retrata a transição e adaptação de Betânia a essa nova realidade, enquanto ela redescobre suas raízes e lida com as mudanças impostas pelo progresso.

Marcello Botta, em sua estreia, demonstra um domínio impressionante da estética e da narrativa visual. A montagem de Botta, somada a um trabalho de fotografia memorável, transmite uma autenticidade profunda. As cenas são cuidadosamente iluminadas pelo sol do dia e pelo fogo à noite, refletindo a beleza e a crueza dos Lençóis Maranhenses. O uso de elementos como o folclore do Bumba Meu Boi adiciona camadas de riqueza cultural e espiritualidade à trama.

Diana Mattos oferece uma performance comovente e autêntica como Betânia, refletindo a resiliência e a vulnerabilidade da personagem. O núcleo do absurdo no filme é trazido à vida por Anouk Mulard como Sofie e Tim Vidal como Bernard, franceses que viajam para o Maranhão. Suas cenas são as mais ficcionais e coreografadas do filme, proporcionando um contraste interessante com o restante da narrativa e provocando fortes reações do público.

Betânia explora temas de luto, identidade, e adaptação, enquanto faz uma crítica sutil à modernidade e ao progresso. A inclusão de elementos modernos, como a internet e os smartphones, contrasta fortemente com a vida tradicional da aldeia, onde coisas simples como deixar a geladeira ligada 24 horas não existia, assim como tomar banho de chuveiro. A presença de lixo trazido pelas marés do Atlântico, um fenômeno emergente nas praias do Nordeste, serve como um símbolo poderoso das invasões indesejadas da modernidade.

A abordagem de Marcello Botta à cinematografia é particularmente inspiradora. A trilha sonora é igualmente notável, com canções populares adaptadas em estilos como brega, reggae e cânticos. Este uso criativo da música acentua o choque cultural e a narrativa da adaptação.

Betânia é uma obra que celebra a cultura e a resiliência do povo brasileiro, enquanto critica sutilmente as imposições da modernidade. A narrativa é uma reflexão sobre a mudança e a adaptação, questionando o endeusamento da vida urbana e explorando o que realmente buscamos em nossas vidas.
Ainda que por vezes apresente um excesso de informação e lutas sociais, Betânia permanece como um documento cultural essencial e um testemunho da capacidade humana de encontrar felicidade e pertencimento em qualquer lugar. Este filme é mais do que um filme; é um resgate da memória e das tradições.

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Virgínia e Adelaide

Virgínia e Adelaide, sob a direção visionária de Yasmin Thayná e Jorge Furtado, oferece uma janela para um capítulo crucial e muitas vezes negligenciado da história brasileira. O filme, que já causou um impacto significativo no 52º Festival de Cinema de Gramado e está agora fazendo seu circuito no Festival do Rio.

O enredo foca nas vidas interligadas de Virgínia Leone Bicudo (interpretada por Gabriela Correa), uma socióloga e psicanalista negra brasileira, e Adelaide Koch (Sophie Charlotte), uma médica e psicanalista autodidata, judia alemã. A trama narra o encontro dessas duas mulheres em 1937, um ano após a chegada de Adelaide ao Brasil, fugindo da perseguição nazista com a sua família. Esse encontro foi o começo de uma jornada conjunta que iria desafiar e transformar o cenário da psicanálise no Brasil.

A atuação de Gabriela Correa como Virgínia é poderosa e carrega consigo uma intensidade que captura a complexidade de ser mulher negra em uma sociedade permeada pelo machismo, patriarcado, racismo e preconceito. Sophie Charlotte oferece uma performance igualmente rica como Adelaide, expondo as lutas de uma refugiada judia que busca reconstruir sua vida enquanto enfrenta suas próprias barreiras.

Jorge Furtado, que também assina o roteiro, constrói uma narrativa que mescla ficção com arquivos documentais, proporcionando uma profundidade histórica e emocional ao filme. A habilidade de equilibrar a linha tênue entre documentário e drama ficcional é um dos pontos fortes da direção e montagem, criando uma experiência cinematográfica que é ao mesmo tempo educativa e tocante.

A produção pela Casa de Cinema de Porto Alegre, juntamente com a coprodução da GloboFilmes e GloboNews, garante uma qualidade de alto nível.

Virgínia e Adelaide não é apenas um tributo a duas mulheres extraordinárias que ajudaram a popularizar a psicanálise no Brasil; é também uma reflexão sobre a resiliência frente às adversidades. A relação de cinco anos como médica e paciente, mais de três décadas como colegas e uma vida inteira como amigas é apresentada com uma sensibilidade que captura e celebra a força das suas conexões pessoais e profissionais.

A previsão de estreia é para o primeiro semestre de 2025. Este filme é uma necessidade histórica de resgate, lançado em um momento em que a memória e a luta por justiça e igualdade são mais relevantes do que nunca.

Em resumo, Virgínia e Adelaide é uma obra cinematográfica que promete educar, inspirar e emocionar. Yasmin Thayná e Jorge Furtado entregam um filme que não apenas preenche uma lacuna na historiografia brasileira, mas também oferece uma experiência cinematográfica. É uma celebração da coragem, da amizade e do impacto duradouro que estas duas mulheres notáveis tiveram no campo da psicanálise e na sociedade brasileira como um todo.

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